Geralmente, a saúde é um direito humano fundamental e universal, essencial para a protecção da vida e da dignidade. Mas neste contexto de manifestações pós-eleitorais, o direito à saúde está a ficar ofuscado devido a dificuldades dos funcionários do sector e dos utentes em chegarem às unidades sanitárias por causa de barricadas na via pública. Perante este cenário, urge maior sensibilidade por parte dos manifestantes sobre a necessidade de livre trânsito para doentes e profissionais de saúde, independentemente de quaisquer circunstâncias.
Cerca de sete (07) semanas após o início, 21.10.2024, das manifestações populares contra os resultados eleitorais anunciados pela Comissão Nacional de Eleições (CNE), o seu impacto sobre o sector da saúde continua mais visível e desastroso. O facto é que a dificuldade de mobilidade causada pela colocação de barricadas nas vias impede o acesso às unidades sanitárias por parte dos profissionais de saúde, bem como pelos utentes.
Situações desta natureza acabam por colocar em perigo a saúde de muitos utentes que necessitam de atendimento médico, sobretudo aqueles doentes crónicos (oncológicos, hemofílicos, hipertensos, seropositivos, etc) que necessitam de um atendimento mais especializado devido ao seu estado de saúde delicado.
Desde que iniciaram as manifestações, por exemplo, 130 doentes hemofílicos enfrentam dificuldades de aceder às unidades sanitárias para o devido tratamento, com destaque para Maputo cidade e província, Nampula, Zambézia, Tete, Manica, Cabo Delgado e Niassa.
Actualmente com 34 anos de idade, Isaque Cande é doente hemofílico desde os 11 anos. Pela primeira vez desde que foi diagnosticado, Cande viu-se entre a vida e a morte, na semana passada, por não ter conseguido deslocar-se ao Hospital Central de Maputo (HCM) para tratamento devido às barricadas colocadas na via pública pelos manifestantes. Na altura, com dores intensas e sangramento na região do abdômen, ombros e cotovelo, Cande teve de usar gelo para remediar a situação enquanto esperava deslocar-se ao hospital.
Carla (nome fictício), seropositiva há cerca de 15 anos e residente no Município da Matola, está entre os doentes que viram seu CD4 – tipo de célula do sistema imunológico que desempenha um papel importante na defesa do organismo contra infecções e doenças – a baixar por não ter conseguido deslocar-se a um centro de saúde para levantar anti-retrovirais. Preocupada com a situação, Carla defende a necessidade de as unidades sanitárias disponibilizarem medicamentos, no mínimo, para uso durante dois meses, sobretudo em tempos de crises, de modo a permitir que os doentes possam continuar medicação sem sobressaltos.
Aliás, actualmente, a despensa de medicamentos para tratamento anti-retroviral (TARV) domiciliário tem sido para 1, 3 e 6 meses, dependendo do estado de saúde do paciente e assiduidade durante o tratamento presencial na unidade sanitária, segundo revelou ao Observatório Cidadão para a Saúde (OCS) o Director-executivo do Conselho Nacional do Combate ao SIDA (CNCS), Francisco Mbofana.
Associações de Doentes Crónicos Descrevem a Situação como Lastimável
Porque há muitos doentes a sofrerem devido ao condicionalismo na via pública para chegarem às unidades sanitárias, as associações de doentes crónicos descrevem a situação como lastimável e perigosa. Assim, as associações de doentes hemofílicos e de doentes oncológicos, por exemplo, defendem que as autoridades de saúde devem redobrar esforços na criação de estratégias para permitir que os doentes tenham acesso ao tratamento, mesmo em situação de qualquer crise que afectar o país.
Consta que há casos de doentes com cancro, que apesar da debilidade da sua saúde, sentem-se obrigados a chegar ao Serviço de Oncologia do Hospital Central de Maputo (HCM) duas ou três horas do habitual para o tratamento, segundo Celisa Quelhas que falava em representação Associação da Luta Contra o Cancro de Moçambique (ALCC). Entre o grupo, constam crianças e idosos que muitas vezes acabam ficando, em condições adversas, longas horas à espera da reabertura das vias para regressarem às suas residências.
Enquanto que, para o caso de doentes hemofílicos, há situações de vários que não conseguem nem sair das suas residências devido a barricadas na via pública. O cenário acima descrito é mais notório na cidade e província de Maputo que têm sido os principais focos de manifestações populares contra os resultados eleitorais, segundo revelou Nelson Damião, presidente da Associação Moçambicana de Hemofilia.
“Um dos problemas é o facto dos hospitais só disponibilizarem para os doentes hemofílicos medicamentos (factor XIII e IX – uma proteína do sangue que ajuda a estabilizar os coágulos) para tratamento domiciliar por apenas uma semana. O agravante é que os custos nas farmácias privadas são altos. Uma carteira de 500 unidades custa 12 mil meticais e há casos em que o doente deve medicar duas ou três vezes por dia, o que eleva os custos”, revelou Nelson Damião.
Assim, para minimizar o problema de mobilidade dos doentes, a Associação Moçambicana de Hemofilia está a “negociar” com os hospitais a disponibilização de ambulâncias para buscar os doentes graves, segundo Nelson.
Ausências de Profissionais de Saúde Sufoca os Que Marcam Presença
O sector da saúde enquanto provedor de serviços clínicos também está a sofrer pressão. Mas a pressão não é sobre a demanda maior no atendimento, pois o número de utentes que procuram pelos serviços baixou bastante devido a dificuldades de mobilidade nas vias. O facto é que há várias situações de profissionais de saúde que são obrigados a duplicar turnos para responder a ausências dos seus colegas que não conseguem chegar às unidades sanitárias, devido ao impedimento de circulação na via pública, neste contexto de manifestações pós-eleitorais.
Nos últimos três dias, 9-11 de Dezembro de 2024, a cidade de Maputo, por exemplo, registou, em média, ausências de 482 e 589 de profissionais de saúde, de um total de 2.678 afectos várias nas unidades sanitárias. Preocupada com a situação, a chefe de Departamento de Saúde na Cidade de Maputo, Rosemina Ismael, apela à maior compreensão dos manifestantes sobre a importância de admitir a livre circulação de profissionais de saúde, bem como os doentes.
Por sua vez, enquanto espera pelo bom-senso dos manifestantes sobre livre circulação, o Hospital Central de Maputo (HCM) – que também se ressente de ausências dos profissionais de saúde – opta pela estratégia de usar ambulâncias para garantir a mobilidade do seu pessoal, em casos extremos. “Temos autocarros disponíveis para recolha dos funcionários, mas em caso de impedimento nas vias optamos por enviar ambulâncias para buscar os colegas cuja presença é extremamente necessária”, revelou ao Observatório Cidadão para a Saúde o chefe do Departamento de Comunicação e Imagem do HCM, Oliveira Pinoca.
Já o Hospital Central de Nampula (HCN) regista mais casos de atrasos na chegada dos profissionais de saúde, sendo que as ausências directamente causadas pelas manifestações populares têm sido poucas. O facto é que muitos profissionais de saúde optam por uso de bicicletas e motorizadas para chegarem aos seus postos de trabalho, meios circulantes cujo impedimento não tem sido maior naquele ponto quando comparado com viaturas.
Mas, de qualquer forma, as manifestações populares influenciam negativamente, sendo que os Serviços de Cirurgias e Ortopedia são os mais pressionados, segundo revelou o Diretor-geral do Hospital Central de Nampula (HCN), Cachimo Machude Mulina, durante entrevista ao Observatório Cidadão para a Saúde.
Sobrecarga Horária aos Profissionais de Saúde Compromete Qualidade de Serviços
Apesar da fraca demanda pelos serviços de saúde, alguns profissionais daquele sector são obrigados a trabalhar acima do horário normal em substituição de colegas que não conseguem chegar aos seus postos de trabalhos, devido à colocação de barricadas nas vias pelos manifestantes. Esta situação está a preocupar a Ordem dos Médicos de Moçambique (OrMM), bem como a Ordem dos Enfermeiros de Moçambique (OEMo) que defendem a criação de estratégias conjuntas para aliviar a situação.
Aliás, foi neste contexto que a Ordem dos Enfermeiros de Moçambique emitiu esta terça-feira, 10.12.2024, um comunicado a apelar ao bom-senso para o livre trânsito dos profissionais de saúde e dos doentes. Essa medida, segundo o vice-Bastonário dos Enfermeiros, Grácio Guambe, permitirá alternância de turnos laborais, o que pressupõe que os profissionais estarão menos propensos a desgaste físico e mental.
O facto é que, nas condições actuais de alargamento de turno, muitos profissionais de saúde, por exemplo, trabalham em condições de pressão o que pode estar a influenciar na qualidade do atendimento.
“Estamos preparados para não abandonar o posto de trabalho, mas é desgastante trabalhar sem substituição. A atenção do profissional sobre doente perde-se à medida que vai ficando cansado de atender acima do horário normal, mesmo que a fila seja curta. Logo, a qualidade dos serviços prestados fica em risco”, afirmou o Bastonário da Ordem dos Médicos de Moçambique, Gilberto Manhiça, acrescentando que espera o retorno à normalidade o mais rápido possível, para evitar deterioração do estado de saúde de milhares de moçambicanos que necessitam de atendimento clínico pontualmente.
Retrocede Disponibilidade de Sangue nas Unidades Sanitárias do País
Consta que o impacto das manifestações populares está a afectar também os insumos clínicos vitais, tornando o risco de vida maior. A disponibilidade de sangue, por exemplo, começa a escassez em várias unidades sanitárias do país. A situação acontece porque muitos cidadãos enfrentam dificuldades de deslocação para doar sangue devido ao contexto das manifestações populares. Por outro lado, as autoridades suspenderam, por questões de segurança, as brigadas que deslocavam a vários pontos para a colecta de sangue no país.
A situação é muito preocupante sobretudo porque aproximamos a quadra-festiva, época cujo sangue tem sido muito necessário para transfusão a pacientes vítimas de acidentes de viação, que têm sido recorrentes, segundo revelou a Directora-geral do Serviço Nacional de Sangue (SENASA), Sara Salimo. Mesmo perante a situação de crise que o país atravessa, Sara Salimo apela aos cidadãos a doarem sangue logo que tiverem uma oportunidade para o efeito.
“Continuamos a sensibilizar as pessoas para doarem sangue, apesar da situação actual do país. O sangue deve estar nas unidades sanitárias à espera do doente, não o contrário. Por isso, devemos entender a importância e prioridade para doar sangue”, afirmou a Directora-geral do Serviço Nacional de Sangue (SENASA), Sara Salimo.
Disponibilidade de insumos médicos garantida nas Unidades Sanitárias
Consta que algumas unidades sanitárias estão a receber ligeiramente tarde o stock dos insumos médicos distribuídos através do Armazém da Central de Medicamentos e Artigos Médicos (CMAM). A situação afecta em larga medida a cidade e província de Maputo, considerados focos de manifestações populares pós-eleitorais.
Apesar desta situação, a Directora-geral Adjunta da CMAM, Lucrécia Venâncio Mateus, garantiu que há disponibilidade de insumos médicos em todas unidades sanitárias, uma vez que a distribuição é feita dentro de um programa com antecedência e alargado.
Assim, segundo a mesma fonte, o condicionalismo causado pelas manifestações populares apenas afecta 20 por cento da capacidade de distribuição, situação que tem sido contornada no período de intervalos dos protestos.
“Por enquanto não há motivos de alarme sobre a distribuição de medicamentos. Estamos a conseguir corresponder às solicitações das unidades sanitárias” afirmou a Directora-geral Adjunta da CMAM, acrescentando que actualmente tem havido solicitação de muitos artigos para o tratamento do trauma, tendo em conta o contexto da crise.
Recomendações
Perante o actual cenário de manifestações pós-eleitoral, é imperioso tirar lições e as responsabilidades que recaem sobre o governo, em especial o Ministério da Saúde, para evitar que situações semelhantes no futuro imperam os profissionais de saúde e doentes de acederem às unidades sanitárias:
1. Implementação de Planos de Contingência para o Sector da Saúde
- Rotas Alternativas: Criar e divulgar rotas seguras para ambulâncias e transportes de doentes, bem como de profissionais de saúde durante protestos.
- Centros de Saúde de Emergência: Estabelecer unidades móveis ou pontos estratégicos de atendimento para regiões com alto risco de bloqueios das vias de acesso.
2. Educação em Direitos Humanos
- Promover campanhas de conscientização sobre o direito à saúde como um direito humano inviolável, direcionadas às comunidades e aos manifestantes.
- Capacitar agentes das Forças de Defesa e Segurança (FDS) sobre a importância de respeitar os serviços de saúde em cenários de crise.
3. Monitoria e Documentação
- Criar um sistema de monitoria para documentar e reportar violações relacionadas ao acesso à saúde durante protestos, garantindo que esses dados sejam usados para melhorar futuras respostas.
4. Colaboração Intersectorial
- Estimular a articulação entre o Ministério da Saúde, Organizações da Sociedade Civil para criação de resposta integrada na disponibilização de serviços de saúde remotamente em contexto de crises no país.
5. Dispensa de Medicamento
- Criação de um plano alargado e por um período longo de dispensa de provisão de medicamentos aos doentes para tratamento noticiário, como acontece com os doentes seropositivos (no intervalo de 1, 3 e 6 meses).
6. Gestão dos Recursos Humanos
- Criar equipas de prontidão de profissional de saúde para evitar a sobrecarga laboral e desvirtuamento da qualidade do atendimento.
7. Criação de dormitórios aconchegantes
- Criar dormitórios para permitir que os profissionais de saúde tenham locais aconchegados para descansar após jornada laboral, enquanto esperam pelo momento oportuno para retomar as suas residências. (OCS)