Através da Resolução n.º 76/CNE/2024, de 12 de Setembro, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) deliberou, em sessão plenária do órgão, pela utilização, durante as eleições gerais de 2024 – sétimas eleições presidenciais e legislativas e quartas eleições dos membros das assembleias provinciais de 9 de Outubro próximo – das urnas usadas no processo de eleições autárquicas realizadas no passado dia 11 de Outubro de 2023.
A deliberação, cujo conteúdo contrasta com os artigos 56 da Lei n.º 15/2024 e 76 da Lei n.º 14/2024, ambas de 23 de Agosto no ano em curso, resulta, segundo a Resolução, da fundamentação apresentada ao órgão pelo Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE).
A redacção dos dois artigos em referência aponta para o uso de urnas transparentes e com uma ranhura que permita a introdução de um único boletim de voto por eleitor, tudo pensado para evitar situações de fraude eleitoral. Para a manutenção do uso das urnas do processo das eleições autárquicas de Outubro de 2023, a CNE, nos termos da citada Resolução, apresenta como argumentos o facto de: (i) terem sido adquiridas 14.775 urnas para somar às 64.106 do processo eleitoral passado; (ii) o intervalo temporal entre a entrada em vigor do pacote eleitoral revisto a 23 de Agosto de 2024 e a realização da votação ser de 47 dias representa um período de tempo insuficiente para garantir a logística necessária para o processo; e (iii) a inexistência de orçamento para aquisição do novo tipo de urnas não antes planificadas.
A indicação da possibilidade do uso das urnas do processo das eleições autárquicas de Outubro de 2023 já tinha sido avançado pelo porta-voz da CNE, Paulo Cuinica, durante a sua participação no Programa CIPCAST, do dia 29 de Agosto.
Na altura afirmou que: «… todo o esforço seria empreendido no sentido de se cumprir a lei…», mas acrescentou que: «…a decisão final dependia: a) de cabimento orçamental; b) da disponibilidade do fabricante» – já que as urnas são feitas num formato já “estandardizado” – e «c) do tempo para garantir o transporte desse material para o país, já que é vindo de fora».
A verdade é que, de facto, por lei, e conforme vem citado na citada Resolução, compete à CNE, nos termos da al. i), do n.º 1, do artigo 9, da Lei n.º 30/2014, de 26 de Setembro (Lei da CNE), aprovar os modelos de boletim e caderno de recenseamento, cartão de eleitoral, boletim de voto, actas de votação das assembleia de voto, editais e “quaisquer outros impressos ou materiais a serem utilizados durante o processo eleitoral”.
Assim, é de se compreender que a CNE, perante as limitações por si referidas com vista a adquirir o tipo de urnas que a nova lei eleitoral determina, entendeu que poderia afastar tal obrigatoriedade com base na disposição da Lei que cria o órgão (Lei da CNE) por lhe conferir, entre outros, poderes para aprovar o tipo de material a ser usado nas eleições. Ora, parece que, para o órgão, tal poder abrange, igualmente, a escolha do tipo de urnas.
No entanto, em matérias de escolha do tipo de urnas a utilizar no processo eleitoral, nos termos da nova lei eleitoral, esse poder não é atribuído à CNE. Na verdade, o mesmo também se aplicava aquando da vigência da lei eleitoral revogada. À CNE cabe, apenas, adquirir o tipo de urna que a lei eleitoral expressamente consagrou. Do acima exposto, conclui-se que se trata de uma imposição legal que não pode ser contornada ou afastada por meio de uma deliberação da CNE.
Do ponto de vista jurídico, a deliberação constitui um acto de menor valor jurídico que a lei. Por isso, nenhuma deliberação deve conter uma disposição que contrarie o conteúdo de uma lei, sob o risco de aquela ser considerada ilegal Resolução da CNE abre espaço para fraude eleitoral e frustra os consensos alcançados no contexto da revisão da lei eleitoral pelo Parlamento.
A quem isso beneficia?
Com efeito, ao se dar, possivelmente, por validada a deliberação da CNE sobre o uso das urnas do processo das eleições autárquicas de 2023, abre-se um caminho para que as situações de fraude eleitoral, ao exemplo das registadas nas eleições, possam ser praticadas, sobretudo no que se refere a casos de introdução, nas urnas, de mais de um boletim de voto a favor de certos partidos, minando a transparência e a justeza do processo. Além do acima exposto, vale referir que esta deliberação contrasta com os consensos alcançados. no quadro da revisão da lei eleitoral que vai reger as eleições gerais de Outubro de 2024.
O consenso foi entre os três partidos políticos com assento parlamentar, nomeadamente a Frelimo, Renamo e MDM. A não aplicação da resolução pode instalar um clima de desconfiança e tensão, especialmente vindo do lado do partido proponente da adopção das novas urnas.
Uma nota do Jornal O País dá indicação de que a adopção do novo modelo de urnas (com ranhura transparente e que permite a introdução de um único boletim de voto por eleitor) terá sido proposta pela Renamo. Este dado foi avançado pelo porta-voz deste partido, Marcial Macome, quando, em conferência de impressa, reagia à acusação de que o partido se aliou à Frelimo com vista a retirar a competência dos tribunais judiciais de distrito e de cidade de decidirem pela recontagem de votos, em casos de irregularidades eleitorais. Assim, a continuidade do uso de urnas iguais as das eleições autárquicas de 2023 parece beneficiar particularmente o partido Frelimo.
As recorrentes reclamações e denúncias sobre alegada enchente de urnas ou acusação de introdução de mais de um voto por eleitoral, de eleição em eleição, pesam sobre a Frelimo. Esta pode ter sido a razão que levou a Renamo, no contexto da revisão da lei eleitoral, a propor o uso de urnas que permitem a introdução de um único boletim de voto por eleitor.
Demora (propositada?) da promulgação da lei eleitoral pelo Presidente da República como uma das causas da deliberação ilegal da CNE sobre a utilização das urnas das eleições autárquicas de 2023.
A deliberação ilegal da CNE, que determina o uso das urnas das eleições autárquicas de 2023, resulta, em parte, da demora na promulgação da lei eleitoral que viabilizaria as eleições gerais de Outubro, pelo Presidente da República. O acto de promulgação só ocorreu no dia 21 de Agosto, isto é, a pelo menos três dias do arranque da campanha eleitoral e a menos de 50 dias do dia da votação, gerando, com efeito, algum potencial de embaraços sobre questões logísticas e/ou organizações da CNE.
É que, ao se optar pelo concurso público, que é modalidade regra para aquisição de bens e serviços pelas entidades públicas, nos termos do Regulamento de empreitada de obras públicas, fornecimento de bens e prestação de serviços ao Estado, para se encontrar um fornecedor do tipo de urnas que a lei exige, 50 dias seriam logicamente escassos, tendo em atenção as formalidades que o citado Regulamento pressupõe.
Ora, a esta altura, dada a escassez do tempo e havendo disponibilidade financeira, a opção pelo ajuste directo, para que não se violasse a lei eleitoral, seria a opção aplicável. Algumas correntes de opinião, incluindo o Centro de Integridade Pública (CIP), já tinham chamado a atenção sobre os possíveis constrangimentos da realização de revisões sobre a lei eleitoral em ano de eleições e à boca da sua realização.
Nas observações destacaram-se os problemas que resultariam em problemas de assimilação, interpretação e de aplicação das soluções por ela oferecidas. Poderia haver, igualmente, problemas de organização e curso normal do processo eleitoral, baralhando, assim, as projecções de cada um dos intervenientes do processo. A esse propósito, já era expectável que a alteração da lei eleitoral, tal como acontece com qualquer acto de concepção ou alteração de uma lei, acarretaria custos inerentes à sua aplicação.
Desta forma, ao se promulgar a revisão de uma lei eleitoral que contou com a alteração de perto de 30 artigos dever-se-ia ter acautelado a existência de condições logísticas, incluindo orçamentárias, para a concretização das injunções nela contidas, como mecanismo de garantir a integridade desejada na condução do processo eleitoral.
Que ilações se tiram?
Da abordagem aqui feita, podem-se tirar as seguintes ilações:
• Que a revisão da lei eleitoral deve ser feita em tempo razoável com vista a evitar os possíveis constrangimentos da sua aplicação, com destaque para aquelas relacionadas com a disponibilidade financeira;
• Que é preciso que sejam afastadas todas as deliberações da CNE que não encontrem qualquer amparo nos termos da lei eleitoral, sob risco de se abrir um precedente para outras situações futuras que possam acontecer ao longo do presente processo eleitoral.
Que caminhos há pela frente?
• Interposição de recurso pelos partidos políticos concorrentes às eleições gerais, junto da CNE. Mantendo-se a Resolução, cabe recurso junto do Conselho Constitucional, com vista a decretar a anulação da referida Resolução que delibera pelo uso das urnas do processo das eleições autárquicas de 2023, por violar a lei eleitoral.
• Por a Resolução da CNE ser pública e já ter chegado ao conhecimento do Ministério Público, este deve, no quadro do exercício das suas funções, nos termos da sua Lei Orgânica, intimar a CNE para se conformar com a lei, relativamente ao conteúdo da Resolução imbuída de ilegalidade, indicando os prazos para a tomada de diligências com vista a reposição do acto ilegal, sob risco de crime de desobediência. (TEXTO: Centro de Integridade Pública)