Por Bendito Nascimento
— Já foi ver com os seus próprios olhos, senhor Faladario? — perguntei, enquanto a graxa brilhava sob o sol inclemente. — Dizem que aquilo é homenagem, mas se isso é homenagem, então as barracas lá do Xipamanine deviam ser consideradas centros comerciais!
O senhor Faladario ajeitou o chapéu puído que já o acompanhava há décadas e soltou uma risada que quase ecoou pela avenida.
— Fui lá, sim. E, quando olhei bem, até pensei que tinha chegado no lugar errado. Aquilo não é homenagem, é castigo! Com aquela cara que parece ter sido moldada num apagão, até o próprio tio Mondlane ficaria ofendido.
Segurei a risada, mas não consegui evitar que a escova deslizasse da minha mão. O velho estava certo. A estátua tinha um pescoço tão fino que parecia estar a lutar para não ser esmagado pela cabeça desproporcional.
— Até parece que o escultor estava com raiva do homem, senhor Faladario. — Sacudi a cabeça, ainda a esfregar com vontade o sapato. — Aquela mão levantada, cheia de dedos tortos, parece é que tá a pedir caril para o jantar.
O senhor Acácio limpou o suor do rosto e inclinou-se para frente, como se fosse partilhar um segredo.
— Rapaz, eu digo-te mais: até os pombos ficam com medo de pousar naquele ombro torto. E aquele bronze todo desalinhado, com os pés abertos como quem acabou de sair do chapas? Se aquilo é arte, então a minha neta, que só faz rabiscos, já é uma Picasso!
Rimos juntos, mas por trás do riso, o desconforto era real. Como é que algo assim, que nem parecia obra de um profissional, foi aprovado?
— Aquilo parece mais uma estátua depois de sair de um estaleiro, senhor Faladario. Tudo fora do lugar! A cara espremida, os olhos perdidos e a boca… nem sei se tá a sorrir ou a morder-se de raiva. Parece que meteram a estátua numa máquina de lavar e deixaram-a girar por muito tempo!
O senhor Acácio limpou os óculos com calma e fitou-me com a serenidade de quem já viu muitas coisas desmoronarem.
— Aquela estátua devia ter um aviso: “Cuidado, risco de queda”. Mas não de ser roubada, não! De cair mesmo, de tanto desalinho. E o mais engraçado é que ninguém sabe explicar como foi parar ali. Até parece que fizeram um sorteio às cegas para escolher o escultor.
Suspirei, a olhar para o céu, onde nuvens escuras começavam a formar-se. O monumento, lá no meio da praça, parecia inclinar-se como se estivesse a dar uma última despedida ao bom senso.
— O Mondlane era um homem de firmeza, de cabeça erguida. Agora, com esta estátua que mais parece a torcer de vergonha, o homem deve estar a revirar-se no túmulo. Aposto que, se pudesse, descia lá para endireitar o pescoço daquela coisa!
O senhor Faladario soltou um riso amargo e ajeitou-se no banco improvisado.
— E eu até consigo imaginar o que a estátua diria se falasse: “Com tanto artista por aí, tinham que escolher logo o pior para me eternizar assim? Onde é que está o respeito por quem lutou pela liberdade deste país?”
A cena era trágica e cômica ao mesmo tempo. Uma estátua que devia inspirar orgulho e memória, mas que virou motivo de piada até para as crianças que passavam por ali.
— Até parece que a estátua está a pedir desculpas por existir, senhor Faladario. E, com aquele braço torto, parece que tá a acenar para os problemas do país, a dizer “Olha, lá vem mais um!” — sacudi a cabeça, a tentar esconder a minha frustração com humor.
O senhor Acácio deu-me um olhar sério, mas com um sorriso contido nos lábios.
— E o pior, rapaz, é que com essa estátua assim, até os turistas vão pensar que estamos a gozar com a nossa própria história. Monumento é para ser símbolo de honra, mas este é mais um símbolo de como as coisas estão a ficar todas tortas por aqui.
Fiquei a pensar no que ele disse, enquanto terminava de engraxar os sapatos. A estátua estava lá, toda desalinhada, como que a lutar para não se desfazer. E nós? Nós rimos para não chorar.
— O Mondlane merecia mais, senhor Faladario. Até nós, aqui na esquina, conseguimos ver que aquilo é uma vergonha. Mas quem é que vai dizer? Talvez, quando a estátua cair de vez, a gente vá lá e ergue uma nova. Quem sabe, até peço à minha neta para desenhar um esboço…. Aposto que ficaria melhor!
O velho soltou um riso alto e levantou-se, os sapatos agora a brilhar como nunca. E eu fiquei ali, a ver a estátua cambalear sob o peso da incompetência, a pensar que, se o próprio Mondlane visse aquilo, talvez preferisse continuar na história sem um monumento, do que ser lembrado de forma tão desastrada.
Porque, no fim, quando até o bronze parece rir-se da situação, sabemos que alguma coisa precisa ser consertada. E não é só a estátua que tá a precisar de reforma.