Bendito Nascimento
Então, senhor Andario, já soube da última? A tal Fly Modern Ark largou o leme da LAM, hein? – começou Sapatario, enquanto passava a escova com vigor no sapato do cliente.
Hummm… – resmungou Andario, olhando de relance o sapato que aos poucos recuperava o brilho. – Não me surpreende. Aquela empresa é como um sapato velho, Sapatario. Por mais que o lustre, nunca brilha como devia. Só fazem promessas de um calçado novo, mas a sola continua rota.
E não é que tens razão, senhor Andario? Olhe, a mulher até que tinha estilo, não vou mentir. Modernizar a LAM parecia um sonho bonito. Mas sabe como é, não é? Quando o sapato já vem com buracos, por mais que o engraxador tente, não há pomada que segure.
Andario sorriu, ajeitando o colarinho. O vento quente que passava pela rua trazia consigo um cheiro de óleo e gasolina das oficinas ao lado. Era como se o próprio ar carregasse os vestígios da LAM, uma empresa sempre com cheiro de coisa quebrada.
Pois é, meu caro. Ela chegou toda confiante, com aqueles planos de quem vai fazer o avião levantar voo. Mas… a pista é cheia de buracos, Sapatario. E quando o avião tenta correr, só sacode, sacode… e no fim, fica ali parado, como quem não sabe se vai ou fica.
Sapatario riu-se alto, com a escova a brilhar nas mãos como se estivesse a polir não só sapatos, mas também o destino da própria companhia aérea.
Isso mesmo, senhor Andario. A LAM é como esse sapato que estou a engraxar. Vê? Parece bonito à primeira vista, mas tem aqui uns rasgos na lateral que só eu sei. Por fora está limpinho, mas por dentro… está a desmanchar-se. E a Fly… coitada. Tentou, sim, tentou como quem quer dar brilho a sapato encharcado. Mas há coisas que nem o melhor engraxador do mundo conserta.
Andario suspirou, a olhar para o horizonte, onde as árvores se moviam ao sabor do vento, dançando uma melodia que só elas ouviam.
Sabes o que mais me preocupa, Sapatario? A gente olha para a LAM e vê um avião grande, mas ninguém vê o combustível que está a acabar. E a Fly… bom, ela era uma piloto cheia de esperança, mas nem sempre esperança enche o tanque, percebes? Voar com os tanques vazios é a queda certa.
Sapatario, a ajeitar a escova entre os dedos, respondeu com um tom mais sério, como quem entende mais da vida que da própria engraxadora:
É verdade, senhor Andario. Tu bem quis tirar a LAM do buraco. Mas olha, um avião, sem combustível e com as turbinas cheias de poeira, nunca vai longe. E ela deve ter percebido isso. No fim, até o piloto desce antes do avião despenhar. Quem sabe, a próxima pessoa que vier… tenha mais sorte. Ou pelo menos, mais paciência.
Andario levantou-se, admirando o brilhante trabalho de Sapatario. O sapato, agora reluzente, contrastava com o tom amargo da conversa.
Pois é, Sapatario. Se a LAM fosse um sapato, tu serias o único capaz de dar-lhe um jeito. Mas sabes… há sapatos que não se salvam.
Sapatario, com um sorriso, guardou as ferramentas da arte nas caixas:
Há sapatos que nem toda a cera do mundo pode salvar, senhor Andario. E a LAM… bom, essa já há muito que precisa de um sapateiro, não de um engraxador.