Embora os midianitas no meu bairro andem sem rostos, são também imponentes e impiedosos nas suas acções, como os descritos acima. Vivem da colheita alheia, do sacrifício de gente inocente e trabalhadora. São “parasitas”, que se deliciam de sangue de outrem, e que por detrás das máscaras, empunhando armas de fogo, de origem oculta, em número superior às dezenas, na calada da noite, em Mandimba, invadem‐ se residências e de mesas recheadas, nossos “gafanhotos” saciam apetites dos outros.
Já tenho traumas da noite, da madrugada nem digo. Vivo atormentado, sempre que ela pede licença, cessa a minha paz, e a intranquilidade habita em mim, sufoca- me e suga todas as minhas forças.
Meus sonhos abalam‐ se e as minhas realizações me condenam. A sentença é pesada, tão severa que a cada anoitecer, vizinhos meus, divorciam ‐ se dos bens, colocando‐os nas casas de leilão sob protecção.
A cada noite, arrependo‐me de adquirir aquela motorizada que me facilita a circulação. Sou vítima do modernismo, preteri o sinal analógico pelo digital, pensando que apenas uma TV Plasma faria- me viajar nesse mundo das promessas dos candidatos à Presidência da República, descartei a minha ex. e hoje vivo amaldiçoado. E, a caça às bruxas, noite adentro, faz da minha TV, do meu Android, PC, e todos outros objectos electrónicos, mais preferidos do menu.
Nenhum desses bens veio ao acaso. Da lavoura à duvidosa classificação de tabaco. Do pó de giz às longas horas extras não pagas. Já nem falo da nudez mensal de que o meu domicílio bancário é alvo. Todo esforço redundou no fracasso com a entrada dos midianitas em cena.
Feito sonâmbulo, vagueio a cada canto da casa em busca de uma paz sequestrada pelos invasores da noite. Os verdadeiros e legítimos proprietários dos meus bens. Os donos da minha colheita, embora esses, ao contrário dos midianitas, suas incursões são feitas na calada da noite.
Enquanto reina uma atmosfera de pânico para uns, para outros é um amanhecer anunciado pelos corvos, num sinal de que se aproxima a hora. É o sentido inverso das missões, pois enquanto uns, recolhem, outros, se equipam para a missão. Como é dito em Juízes 6:5 “Com efeito, vinham eles e seus rebanhos, com as suas tendas chegavam numerosos com vasta nuvem de gafanhotos, eles e os seus camelos incontáveis; e entravam na terra para devastar.”
Devastando, os midianitas no meu bairro, semeiam terror e com ele, prosperam. Se profissionalizam no furto de bens e do sossego, revelam‐ se artistas neste filme de terror. O silêncio cúmplice das autoridades lhes fortifica, e o Gedeão desta vida revela‐ se ficção.
Mas igual aos filmes de terror, em que o suspense e o drama se confundem, os protagonistas dessas cenas são homens sem rostos. Dão corpo e vida ao roteiro, mas sem nomes e com identidades amputadas. Suas vozes são dubladas, não permitem reconhecimento de nenhuma natureza.
Em cada encenação desfilam a sua classe. Há tiro para tudo que é lado. Dispara- se, espanca‐ se, com as suas barbaridades memórias entram em colapso, quase sempre nada por apontar.
Ao mísero povo cabe-lhe o silêncio. Não se pode dar ao privilégio de soltar um grunhido de reclamação. Mesmo que o fizesse, a culpa morre sempre solteira. Sem vestígios da munição, os tiros são o único cenário daquele evento.
Nunca o cheiro de pólvora foi tão familiar no Bairro Nyerere. Cantamos e dançamos ao som do bailado dos tiros da madrugada. O nosso sacrifício é saciar os apetites dos midianitas dessa terra. Nossos sonhos são hipotecados a favor dos planos de agentes do turno da madrugada.
Condenados à própria sorte passamos de tudo nessa terra. Quando os tiros fingem trégua há sumiços de parte da minha gente. E cada um desses episódios, lembram‐nos que somos pobres demais para anseiam pela paz. E, nessa condição, os jornais tornaram‐ se analfabetos para escrever, a rádio anda muda, as TVS são elitistas demais para reportar essa matéria.
Vivemos engaiolados, onde casas se transformaram em celas, mas é tudo em vão, os midianitas têm entradas triunfais, de fazer inveja às escoltas mais exigentes. Destemidos e ousados, às vezes, anunciam o espectáculo através do festival de munições, cuja proveniência ninguém se atreve a questionar.
A primeira temporada do “Bailado de tiros no meu Bairro”, data de 2016, e resultou de assaltos às casas de agentes económicos. Quando, numa só VOZ, várias ecoaram, não houve munição que os calasse. Perto de uma década depois, na segunda temporada, a História condenará os covardes, inclusive todas as vítimas da suspeita de síndrome de Estocolmo.
(Leonel A. Mucavele)