Almeida Maria
É uma ladainha de dor, de cansaço, de frustração. Mas, acima de tudo, é uma ladainha de exigência por dignidade. E, como em qualquer ladainha, espera-se que os santos ouçam e inter(cedam). Só que, neste caso, os santos não são celestiais. São dirigentes. E estão cada vez mais surdos, e tudo indica que precisamos de Jesus para curá-los.
Esses “santos” modernos ficam nos gabinetes refrigerados, vestem-se com tecidos finos e circulam em carros de alta cilindrada, blindados contra o calor, contra o trânsito e, sobretudo, contra o clamor popular. Vivem numa zona de conforto que os distancia da realidade que juraram servir. Enquanto os profissionais da saúde enfrentam turnos exaustivos sem receber horas extras, e os professores lecionam sem saber se o salário cairá no fim do mês, os dirigentes mantêm intactas as suas regalias, os seus privilégios e a sua indiferença.
A greve, nesse contexto, torna-se um acto espiritual. É o povo ajoelhado, à semelhança do povo de Israel, clamando por justiça. É o trabalhador que, sem força para continuar, decide parar. Não por falta de vontade, mas por falta de condições. E quando essa ladainha se torna colectiva, quando milhares se unem para pedir que as bênçãos da equidade e do respeito lhes sejam concedidas, espera-se que os santos inter(cedam), cedam e que ouçam, porém não. Eles permanecem em silêncio, como se a dor alheia fosse apenas ruído de fundo de um som desagradável. É desagradável porque o povo já está engasgado, com a garganta seca (embora recomendos a beber água) e já não tem força para entoar perfeitamente a Ladainha.
O mais cruel é que esses santos não nasceram santos. Foram (eleitos), e outros nomeados, mas com objectivo de servir. Mas, uma vez entronizados, esquecem-se da missão. O trono lhos transforma em figuras intocáveis, que só descem à terra em épocas de campanha, quando precisam renovar o (voto) de (des)confiança do povo – embora não são eleitos, porque não é a vontade do povo depositada na urna, mas enfim. E mesmo assim, prometem milagres que nunca chegam. Falam de reformas, de valorização, de diálogo. Antagonicamente, o que se vê é o desprezo institucionalizado. Agem como se de deuses tratasse e estes deuses invisíveis, quando dão a cara pedem paciência.
Os médicos que paralisam os serviços não o fazem por capricho como se não tivessem nada a fazer. É porque não podem mais salvar vidas enquanto a deles está à deriva. Os professores que cruzam os braços não o fazem por desleixo. É porque ensinar sem salário é como tentar acender uma vela sem fósforo. E os demais servidores que aderem à greve não estão a sabotar o sistema, muito pelo contrário, estão a tentar salvar o mesmo sistema que lhes sabota. Porque um sistema que não respeita quem o sustenta está condenado ao colapso.
A ladainha das greves é, portanto, um grito de fé. Fé de que, talvez, alguém lá em cima — nos gabinetes, nos ministérios, nas assembleias — ainda tenha um resquício de consciência. Fé de que os santos possam, por um momento, tirar os olhos dos relatórios e de tanta outra papelada e olhar para o rosto de quem sofre. Fé de que a intercessão não seja apenas uma palavra bonita, mas uma acção concreta. Mas essa fé, dia após dia, vai sendo corroída pela indiferença.
E quando os santos não ouvem, o povo começa a perder a esperança. A ladainha torna-se lamento. A greve transforma-se em revolta – um patamar que não queremos atingir. E o que antes era um pedido por dignidade passa a ser uma exigência por mudança. Porque ninguém aguenta viver eternamente em súplica – tanto que dizem: se encurralar um gato e não tiver saída, devorar o que o encurralou é a única saída. Há um ponto em que a paciência se esgota. E quando isso acontece, os santos já não são vistos como protetores, mas como opressores.
A ladainha das greves não é um ataque. É um apelo. É o povo a dizer: “Estamos aqui. Estamos cansados. Estamos a pedir que nos vejam.” E ignorar esse apelo é mais do que negligência, é crueldade. Os santos que não ouvem e não intercedem estão a falhar na sua missão. E, como em qualquer fé, quando os santos falham, o povo procura novos caminhos. Novas vozes. Porque a ladainha não vai parar, simplesmente vai apenas mudar de tom. E é melhor interceder antes que se torne num tom agressivo.
Talvez não inter(cedem) porque não foram canonizados pelo povo nas urnas, o povo canonizou os que não foram entronizados. Talvez estes santos não entronizados ouçam a ladainha do povo. E se ouvirem? Sem legitimidade, não podem em hipótese nenhuma inter(ceder) a vontade do povo, senão juntar-se na mesma entoação.
No fim, resta a pergunta: até quando os santos continuarão surdos? Até quando viverão na zona de conforto, enquanto o país arde em protesto? A resposta está nas ruas, nas escolas, nos hospitais. Está na ladainha que não cessa. E, se os santos não ouvirem agora, talvez não tenham tempo de ouvir depois. Porque o povo, quando deixa de rezar, começa a fazer or(acção), começa a agir.







