Por John Kanumbo
O que se viveu em Mocímboa da Praia e ainda se vive em Cabo Delgado é a subversão ou a rendição e in captura de um Estado soberano a um estado quaisquer e sem norte. No dia 7 de Outubro de 2025, quando o sol se afogava no Índico e as sombras se estendiam sobre as ruínas da vila, Mocímboa da Praia voltou a ser palco de um acontecimento que redefine o sentido da guerra em Moçambique e do Estado ausente rendista e deixando o elemento povo em sua sorte (órfão). Eram cerca das 17h00 quando carros entraram silenciosos, carregados de homens armados, fardados de poeira e de arrogância. Não vieram de surpresa — vieram com propósito. Não atacaram — falaram. Falaram dentro de uma mesquita no bairro Nabubusi, no coração da vila. Falaram com o povo, olhos nos olhos, e disseram alto: alto “Dividiremos dois governos: um islâmico e outro Khafir.” “Não queremos cristãos entre nós.” “Abram os olhos. Não se deixem enganar.” E o que estamos a ver em Mocímboa da Praia é a nova gramática da guerra.
Vestiam fardamentos iguais aos das forças ruandesas dos moçambicanos. Todos estavam de cara descoberta — um gesto raro, que em Cabo Delgado significa: “não temos medo.” E ali, diante da população, ergueram uma bandeira negra com inscrições em árabe e suaíli: “La ilaha illa Allah, Muhammad Rassul Allah.” (Não há outro Deus senão Alá, e Maomé é o seu profeta.) Não era uma bandeira religiosa apenas. Era um manifesto político, um símbolo de autoridade, uma declaração de soberania sobre o território. Depois de falarem, entraram novamente nos carros e regressaram pela mesma estrada. Não houve mortos. Não houve tiros. Não houve reação.
O facto nú é que, eles entraram, pregaram e saíram. O Estado não respondeu. Nem comunicado. Nem pronunciamento militar. Nem explicação do governo. Silêncio absoluto. O silêncio tornou-se o novo uniforme do poder. E cá, nós perguntámos: “Se eles entraram à luz do dia, com carros, bandeiras e câmaras, e o Estado nada fez — quem é que manda afinal?” E é esta a pergunta que resume o colapso: o Estado perdeu a voz, perdeu a presença e perdeu o medo de perder.
O significado nisso é o fim da soberania visível. O que aconteceu em Mocímboa da Praia não é um episódio isolado — é o retrato do fim da autoridade real do Estado. Quem fala em público, quem ergue bandeiras, quem prega dentro de mesquitas sem ser detido, é quem comanda o território. O Estado que se cala, abdica do poder. Quando o inimigo entra, fala e sai — e o governo não reage —, não há neutralidade: há rendição. O silêncio oficial é a confissão do fracasso. Não é prudência. Não é contenção. É medo, desorientação e cumplicidade involuntária.
O poder foi trocado. Hoje, em Mocímboa, o povo já não sabe quem é quem. Os insurgentes vestem o mesmo uniforme dos aliados estrangeiros. Uns dizem ser ruandeses. Outros imitam-nos. O resultado é confusão e desconfiança: o uniforme deixou de significar segurança. Quando o cidadão já não distingue soldado de invasor, o Estado já não é o protetor — é apenas um nome distante.
Essa é a nova estratégia do medo. O que vimos em Nabubusi é a nova gramática da guerra. Durante anos, o terror era a emboscada — decapitações, aldeias queimadas, fugas noturnas. Agora, o terror é a exibição. Eles aparecem de dia, autorizam filmagens, permitem ser vistos. Fazem-se filmar porque sabem que a imagem é a nova arma. O medo já não se esconde — fala, prega, posa. O Al-Shabab descobriu a força do espetáculo e assim dizem tipo:“Filmem-nos, não temos medo! Cansámos de ser escondidos!” — falando em kimwani e suaíli. Não precisaram de disparar. Bastou falar para ferir. Bastou aparecer para dominar. A guerra agora é simbólica — e o Estado é o grande ausente da cena.
Pergunto ao Governo de Moçambique:
Senhor Governo, por favor responda com clareza e sem evasivas: O que é um Estado soberano segundo o Governo de Moçambique? Quando fala em soberania, a que poderes e responsabilidades se refere concretamente? A soberania inclui, no entendimento do Governo, o dever inquestionável de proteger as populações no seu território? Ou a soberania foi transformada em “capacidade selectiva” que protege contratos e corpos alheios, mas abandona cidadãos?
O que é um Governo? É apenas a soma de titulares de cargos ou é a instituição que garante segurança, justiça e serviços básicos? Se o Governo existe para proteger a vida das pessoas, como se explica que homens armados entrem em mesquitas, preguem e saiam impunes? Quem toma a decisão de intervir quando a ordem é quebrada — e por que não foi tomada no caso de Mocímboa ou Mucojo? O que é um povo? E qual é a prioridade do Estado face ao povo? O povo é sujeito de direitos ou variável de gestão política? Quando uma comunidade é obrigada a filmar o próprio recrutamento, que mensagem o Estado quer dar sobre a dignidade dos seus cidadãos?
Onde está a resposta pública? Por que não houve, de imediato, um pronunciamento claro das autoridades sobre o ocorrido em Mocímboa? O silêncio institucional cria vácuo de informação e alimenta boatos. Quem autorizou ou permitiu a circulação dos veículos e a entrada em locais públicos? Que unidades de segurança estavam em patrulha naquele momento? Houve falha operacional ou decisão política deliberada de não intervir?
Qual a avaliação dos serviços de inteligência? Existem identificações de liderança, redes de apoio locais ou transnacionais? O Governo conhecia previamente a capacidade de mobilização desses grupos?
Há coordenadas sobre o uso de fardas/trajes que possam confundir a população? Que medidas para impedir imitações e disfarces que colocam civis em perigo? Que protecções imediatas serão oferecidas às comunidades locais? Quais corredores seguros, patrulhas permanentes e medidas de protecção às mesquitas, igrejas e mercados?
O Governo considera a protecção do povo acima da protecção de interesses económicos e de imagem? O que é o território? Território é solo para contratos e extração ou é espaço de vida e dignidade? Se há acto de posse simbólica (bandeira, proclamação de “dois governos”), o que fará o Estado para reafirmar a sua autoridade territorial efectiva? Qual o papel do Estado perante actos de propaganda armada em locais de culto?
A mesquita (ou igreja) é local sagrado; quando esse local é usado para apelos de recrutamento armado, qual é a resposta penal e operacional imediata do Estado? Que medidas concretas serão tomadas para proteger espaços de culto e líderes religiosos?
Quem garante a segurança quotidiana? Se as forças locais não conseguem responder, qual é o plano contingente? Reforços nacionais? Forças internacionais? Qual a cadeia de comando e regras de engajamento? Se há forças estrangeiras a operar em solo nacional, por que não divulgar publicamente os acordos e mandatos que legitimam a sua presença?
Sobre o uso de fardamentos e insígnias militares por não-estatais: Que medidas administrativas e legais pretende o Governo implementar para impedir que civis ou insurgentes andem com trajes que confundem a população? Haverá fiscalização de venda e circulação de coletes, capacetes, emblemas e veículos militares?
O que o Governo já abriu de investigação sobre os factos de 7/10/2025? Que resultados imediatos podem ser partilhados sobre identificação dos oradores, organizadores e condutores dos veículos?
Haverá protecção a testemunhas e aos que filmaram os vídeos? Que programa imediato tem o Governo para diálogo com famílias, escolas e líderes comunitários visando impedir o recrutamento de menores? Que medidas sociais — emprego, educação, espaço seguro — serão financiadas e implementadas para tirar jovens da rua e da vulnerabilidade ideológica?
Se existem acordos de segurança com terceiros, por que não são públicos? A quem respondem essas forças? Haverá publicação dos termos que regulam presença de tropas estrangeiras, logística e cadeia de comando? Por que, até ao momento, não houve um pronunciamento oficial claro sobre Mocímboa (factos, medidas, investigação)?
Quem na hierarquia do Estado assumirá pública e diretamente a responsabilidade de dar explicações? (Ministro do Interior? Comandante das FDS? Primeiro-Ministro?)
O Estado tem o dever de proteger e o critério de soberania e reafirmo que para o Governo, a preservação da vida humana é a primeira obrigação do Estado. Se assim for, apresente um calendário de medidas imediatas (proteção, investigação, assistência humanitária) e um compromisso de transparência permanente.
Não se trata de retórica: são perguntas essenciais que definem se Moçambique é um Estado que governa para o seu povo ou um aparelho que governa para outros interesses. Exijo respostas públicas, detalhadas e verificáveis. Não aceitamos o argumento do “fora de controlo” como desculpa: a pergunta é, então, quem controla quem neste território?
Peço que o Governo trate estas questões com a gravidade devida — porque cada omissão é vida que se perde e cada silêncio é autoridade dilapidada. E se não o fazer então, são cúmplices.
Pois um Estado que não fala, consente. Não há resposta, nem liderança, nem estratégia visível. O governo de Moçambique tornou-se um eco — responde tarde, quando a poeira já assentou e a bandeira do inimigo já foi filmada. Em 2020, prometeu “estabilidade”. Em 2021, prometeu “reconstrução”. Em 2022 a 2023, prometeu regressos das populações nas suas zonas de origens. Em 2024 a 2025, entrega o silêncio. O silêncio do Estado é mais violento que qualquer explosão. Mata a confiança, mata o civismo, mata a crença de que há governo. E o povo fica entre dois medos: o medo dos insurgentes — que aparecem; e o medo do Estado — que desaparece.
Quando o estado se cala, quem governa é o terror. Este episódio não é apenas mais um capítulo da guerra — é a prova de que o país entrou numa nova era: a era da soberania fragmentada. Cada silêncio oficial é um território perdido. Cada bandeira erguida é uma fronteira deslocada. Os insurgentes já não precisam de balas para vencer. Basta falar. Basta ser ouvidos. Basta o Estado calar.
Fica aqui declarado, sem rodeios: O Governo da República de Moçambique falhou o seu dever constitucional de proteger a vida, a integridade e a soberania dos seus cidadãos em Mocímboa da Praia. Falhou por ausência. Falhou por silêncio. Falhou porque deixou a palavra cair nas mãos de quem prega o medo. Enquanto o Estado continuar mudo, a guerra continuará a falar — e a falar cada vez mais alto. E quando a guerra fala mais alto que o governo, já não há República — há ruínas com bandeiras. E com isso, quando o Estado se cala, o medo aprende a governar.