Por Nelson Charifo[1]
A revisão constitucional proposta abrange temas sensíveis e estruturantes, como a despartidarização do Estado, a reforma fiscal, a justiça eleitoral e a reconciliação nacional. Vale sublinhar que o país que temos actualmente é o possível — mas ainda está distante do país sonhado. Há espaço real e legítimo para melhorias.
Apesar da importância histórica, o processo não é consensual. A exclusão de figuras políticas como Venâncio Mondlane entre os signatários, a auto-marginalização de outros actores políticos e sociais, somada às experiências frustradas de reformas anteriores, gera dúvidas legítimas. Para ajudar a separar o essencial do acessório, apresento abaixo uma análise crítica sobre o que pode ser considerado verdade ou falácia neste debate sobre a implementação do compromisso político para um diálogo nacional inclusivo.
Algumas Verdades (factos)
É verdade (facto) que:
- O País precisa de reformas profundas para garantir maior estabilidade, justiça, desenvolvimento inclusivo, integridade governativa e separação efetiva dos poderes;
- A participação massiva e vigilante da sociedade civil é vital para assegurar a integridade e eficácia do processo de auscultação em curso.
- A omissão dos cidadãos neste processo, assim como a auto-marginalização, sobretudo, das vozes influentes, representa um presente para os que resistem à mudança. A ausência dos “bons” fortalece os interesses daqueles que ganham com a manutenção do status quo. O sucesso deste processo depende da participação activa e plural de todos os sectores da sociedade moçambicana. Estados democráticos e justos são construídos por acções intencionais, engajadas e coordenadas da maioria dos seus cidadãos e não pela omissão dos mesmos;
- O cepticismo de parte dos moçambicanos quanto ao sucesso deste processo de reformas, bem como em relação aos actores e instituições que o conduzem, é real e justificado pelas experiências passadas. As reformas anteriores foram limitadas por acordos bipartidários entre o Governo e a Renamo, sem ampla participação social;
- O envolvimento de figuras políticas relevantes, como Venâncio Mondlane, é importante, mas não garante, por si só, o sucesso do processo. Idealmente, o processo de auscultação e de elaboração das propostas deveria ser um processo fundamentalmente técnico, com mínima influência dos próprios actores políticos. As propostas deveriam emanar, sobretudo, da sociedade, tendo em conta o interesse público — e não os interesses restritos de determinados grupos. Separar o compromisso político para o diálogo nacional inclusivo da auscultação técnica é essencial para evitar confusões e possíveis manipulações. Não ser signatário do compromisso não significa estar excluído do processo de auscultação e da elaboração de propostas para as reformas necessárias.
- A exclusão de Venâncio Mondlane enfraquece a percepção de inclusão no processo, embora não o inviabilize o processo. A participação de Venâncio e de seu partido é relevante e necessária, mas não é condição indispensável para o sucesso desse processo. Todos os actores políticos e sociais deveriam se reconhecer no processo e nos seus resultados. Ademais, ninguém “morreria” se, doravante, se decidir incluir Venâncio no compromisso. Existem várias formas de fazê-lo, com ou sem alteração da Lei n.º 1/2025, de 11 de abril. Os membros signatários podem, por decisão própria, convidar Venâncio a participar dos encontros deste fórum — com plenos poderes ou na qualidade de observador.
- A ausência de mecanismos claros de seguimento e monitoria das propostas apresentadas no processo de auscultação pode comprometer a integridade desse processo. É fundamental que, ao final, as pessoas compreendam como se chegou às decisões finais sobre as reformas adoptadas.
- A metodologia oficial prevê grupos de trabalho e auscultações públicas, mas o alcance territorial, o perfil e o número de participantes por encontro continuam a ser desafiantes. Era necessário que o processo fosse o mais abrangente possível, para evitar a delegação ou a participação por procuração num exercício tão sensível e importante.
- A revisão constitucional proposta inclui temas sensíveis e estruturantes, como despartidarização do Estado, reforma fiscal, justiça eleitoral e reconciliação nacional.
Enfim, o país que temos actualmente é o possível, mas não é o sonhado — há espaço real para melhorias.
Falsidades e Falácias
- É falacioso supor que não existam riscos de captura política das propostas por interesses de certos grupos. A vigilância social é essencial para evitar manipulações e assegurar a integridade do processo de auscultação, elaboração e validação das propostas.
- É falacioso considerar que o país esteja bem, que não precise de reforma constitucional e que baste apenas cumprir a Constituição e as leis existentes. A situação actual de Moçambique exige um novo contrato social. A refundação do Estado moçambicano não pode ser realizada sem uma reforma constitucional profunda.
- É falso que o pessimismo existente em relação ao sucesso do processo justifique a não participação de actores relevantes. Estamos diante de uma oportunidade histórica e concreta para refundar o Estado moçambicano, tornando-o mais estável, justo, funcional, inclusivo, democrático e desenvolvido. Em vez de alimentar desconfianças sobre o processo, todos deveriam participar e vigiar para que ele seja efectivo. Odiar e diabolizar o sol não reduz o calor nem a temperatura da terra.
- É falacioso afirmar que a ausência de Venâncio Mondlane inviabiliza automaticamente o sucesso do processo. Sua participação é relevante e necessária, mas não constitui condição sine qua non para o êxito do processo de auscultação e elaboração de propostas — desde que as propostas resultantes atendam às preocupações legítimas de toda a sociedade, priorizando o interesse público.
- É falacioso considerar que a omissão da maioria neste processo, que visa a refundação do Estado moçambicano, seja benéfica ao país — ou que tal acção represente a via mais indicada e efectiva para expressar descontentamento ou frustrar o governo do dia. A omissão apenas favorece a estagnação e beneficia aqueles que tiram proveito da situação actual. É preciso indagar o seguinte: quem ganha com a exclusão de Venâncio Mondlane e com o fraco envolvimento da sociedade neste processo? Quem se beneficia da ausência de vigilância activa por parte da sociedade civil e de outros actores relevantes?
- É falacioso supor que a composição política da COTE seja, à partida, um problema, tendo em conta os prováveis conflitos de interesses. A natureza dessa comissão não representa um obstáculo inicial — desde que os seus membros desempenhem as funções com responsabilidade, integridade e imparcialidade necessárias.
A nossa história oferece vários exemplos de que o simples facto de pertencer à sociedade civil ou a uma confissão religiosa não constitui garantia de comportamento íntegro. Vimos isso na Comissão Nacional de Eleições, onde membros insuspeitos, devido à sua fé e trajectória, estiveram envolvidos em situações vergonhosas de falta de isenção e transparência, que contribuíram para os cíclicos conflitos pós-eleitorais no país.
- É falacioso considerar que o diálogo seja apenas simbólico ou “para inglês ver”. A Lei n.º 1/2025, de 11 de abril, prevê reformas concretas e profundas. Ainda que imperfeito, o processo em curso representa uma oportunidade histórica para construir um Moçambique mais justo, inclusivo, funcional e democrático.
- É falacioso supor que um processo de refundação do Estado seja informal ou não institucionalizado. O facto de estar sob liderança do Presidente da República não constitui, à partida, um problema — nem pode ser tomado como sinónimo de fracasso. A institucionalização e a liderança estratégica são fundamentais, sobretudo quando acompanhadas por mecanismos de controlo e transparência.
Outros aspectos a observar
- A inclusão de grupos vulneráveis deve ser assegurada como prática efectiva, não apenas como princípio retórico. É preciso assegurar que mulheres, jovens, pessoas com deficiência, comunidades rurais e outros grupos historicamente marginalizados possam ter voz activa e espaço garantido nas auscultações.
- As auscultações não devem ser elitizadas nem concentradas em círculos políticos ou acadêmicos. O processo deve igualmente permitir ouvir o cidadão comum, com metodologias participativas e linguagem compreensível.
- A comunicação institucional sobre os locais, datas e modalidades das auscultações precisa ser clara, acessível e adaptada aos diferentes públicos. Isso inclui o uso de línguas locais, formatos simplificados e canais comunitários — como rádios locais, murais públicos e líderes de bairro.
- A realização de encontros em hotéis e espaços formais deve ser evitada. É preferível utilizar escolas, centros comunitários, praças e outros locais públicos acessíveis, que favoreçam a inclusão e reduzam barreiras simbólicas e logísticas à participação.
- O êxito do processo de auscultação e de elaboração das propostas depende, em grande medida, da qualidade técnica e ética dos membros da COTE — cuja actuação deve refletir compromisso com o interesse público, imparcialidade e competência institucional.
- Apesar do discurso oficial sobre abertura e inclusão, a participação tem ocorrido maioritariamente por convite. Isso contraria o espírito da Lei 1/2025 e limita o carácter verdadeiramente público e democrático do processo. É fundamental a participação seja livre e aberta.
- O sucesso deste processo exige compromisso genuíno, boa-fé e o reconhecimento de que há um bem comum que transcende qualquer interesse de grupo. Aprendemos recentemente — por nossa própria experiência e pela dos outros — que nenhuma estrutura pode resistir eficazmente, por muito tempo, à fúria dos excluídos do bem-estar e da cidadania.
- Enfim, as reformas a serem feitas no âmbito da implementação do compromisso político para o diálogo nacional inclusivo representam uma condição essencial para a sobrevivência nacional e para a construção de um país mais estável, justo, inclusivo, desenvolvido e resiliente.
Nelson Charifo possui uma sólida formação acadêmica e experiência nas áreas de governação descentralizada, promoção de desenvolvimento e administração pública. Ele é Mestre em Ciência Política, Governação e Relações Internacionais e Licenciado em Administração Pública, além de ser Bacharel em Ciências Sociais com especialização em Ciência Política.