O Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público (CSMMP), órgão de gestão e disciplina da magistratura do Ministério Público, demitiu, entre os meses de Julho e Agosto de 2024, um procurador do quadro de pessoal da Procuradoria da Cidade de Maputo. O referido procurador é acusado de tramitar de forma irregular um processo-crime contra um cidadão de nacionalidade estrangeira indiciado do crime de tráfico internacional de drogas, em prejuízo da justiça e do Estado Moçambicano.
O procurador demitido é acusado de usar das suas funções em benefício próprio e em prejuízo de terceiros. Para além da demissão, o CSMMP ordenou a extracção de cópias e a sua remessa ao Ministério Público para abertura de processo-crime. Este é o segundo caso público de demissão de um magistrado do Ministério Público acusado de prejudicar o Estado em processo crime de tráfico internacional de drogas. Nos dois casos, ocorridos em menos de dois anos, estão envolvidos cidadãos estrangeiros.
Em Abril de 2023, o CSMMP anunciou a demissão de um procurador afecto à Procuradoria Provincial de Maputo por ter facilitado a soltura de um arguido de nacionalidade estrangeira, indiciado de tráfico internacional de drogas. Não há infomação que indique que os procuradores demitidos pelo alegado envolvimento na soltura de criminosos tenham sido julgados. Tendo em conta a função de prevenção geral do crime que as penas representam, seria importante que o Ministério Público comunicasse ao público o estágio dos processos-crime contra os magistrados demitidos e acusados de colaborar com o crime organizado.
O tráfico internacional de drogas configura um crime organizado e o seu combate só será possível com magistrados íntegros, conforme reconheceu a própria Procuradora-Geral da República em Maio de 2022. O envolvimento de magistrados do Ministério Público na facilitação de soltura de cidadãos estrangeiros indiciados de crimes de tráfico internacional de drogas revela uma das grandes vulnerabilidades do combate ao tráfico de drogas em Moçambique. Este envolvimento pode dificultar a responsabilização das pessoas ligadas ao tráfico internacional de drogas, com o risco de passar para a sociedade a ideia de que os traficantes gozam de impunidade em Moçambique.
Procuradores implicados também nos raptos
O Gabinete de Informação Financeira de Moçambique (GIFiM) publicou recentemente um Relatório de Análise Estratégica relacionado, entre outras questões, aos riscos de branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo.
O relatório constatou haver indícios de envolvimento de magistrados nos crimes de raptos. Segundo o documento, a indústria dos raptos movimentou, através do sistema financeiro nacional, mais de 33 milhões de dólares (equivalentes a mais de 2,1 mil milhões de meticais, ao câmbio do dia), de Janeiro de 2014 a Maio de 2024.
O envolvimento de magistrados na facilitação de soltura de indiciados de tráfico internacional de drogas ocorre num contexto em que, por um lado, as magistraturas aplicam sanções disciplinares relativamente brandas e, por outro, não há informações de magistrados que alguma vez tenham sido detidos por envolvimento em crimes.
Os raptos e o tráfico de drogas fazem parte dos crimes que representam maior risco de branqueamento de capitais. Vale lembrar que em Outubro de 2022, Moçambique foi alistado na “Lista Cinzenta” do Grupo de Acção Financeira Internacional (GAFI) com vista a assegurar que as autoridades nacionais eliminem com celeridade as deficiências identificadas no seu sistema de prevenção e combate ao branqueamento de capitais.
No seu Relatório de Avaliação Nacional do Risco de Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo de 2022, o GIFiM estima em 2 milhões de dólares o dinheiro que fica em Moçambique (na forma de lucros, subornos e pagamentos) por cada tonelada de heroína traficada.
Procuradores demitidos podem ser readmitidos
Apesar da gravidade do envolvimento de magistrados na facilitação de soltura de indiciados de tráfico de drogas, o CSMMP decidiu aplicar a sanção de demissão, que consiste no afastamento do magistrado. Ora, a Lei Orgânica do Ministério Público e o Estatuto dos Magistrados do Ministério Público prevêm que o magistrado demitido pode ser readmitido decorridos oito (8) anos sobre a data do despacho punitivo, desde que haja, cumulativamente: a) vaga no quadro de pessoal; b) disponibilidade orçamental; c) prove-se, que através do seu comportamento, que se encontra reabilitado.
Teoricamente, isto significa que os procuradores demitidos em 2023 e 2024 por facilitação de soltura de traficantes de drogas podem voltar a exercer as funções de magistrados do Ministério Público em 2032 e 2033, respectivamente.
A demissão de procurador é aplicável nos seguintes casos: a) procedimento atentatório ao prestígio, a dignidade e a função; b) incompetência profissional grave, designadamente: ignorância indesculpável, inaptidão, erro indesculpável, bem como reiterado incumprimento de leis, regulamentos, despachos e instruções superiores.
Para casos de procuradores envolvidos na soltura de pessoas indiciadas de tráfico internacional de drogas, o CSMMP devia aplicar a sanção de expulsão devido à gravidade da conduta dos magistrados. Embora o magistrado do Ministério Público expulso também possa ser readmitido, essa possibilidade só pode ocorrer decorridos 12 anos sobre a data do despacho de expulsão.
Sem prejuízo das sanções disciplinares, é fundamental que os procuradores sejam responsabilizados criminalmente. Pese embora o CSMMP tenha ordenado a extracção de cópias e a sua remessa ao Ministério Público, para abertura de processos-crimes contra os procuradores que facilitaram a soltura de indiciados no tráfico de drogas, facto é que há poucos casos de magistrados julgados e responsabilizados criminalmente.
Nos últimos cinco anos, o Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC) instruiu 77 processos de corrupção contra magistrados de diversas magistraturas. Destes processos, 24 resultaram em acusação, mas não há informação sobre o seu desfecho. Deste número, segundo o Tribunal Supremo e sem dar muitos detalhes, foram julgados e condenados 12 casos. No entanto, não se sabe se dos 12 casos julgados havia processos-crime relacionados com o envolvimento de magistrados no crime organizado. (CIP)