Por John Kanumbo
Ontem, dia 23 de outubro de 2025, outra vez, a farda foi perfurada. Outra vez uma mulher — comandante distrital — saiu de casa, despediu o seus disse “vou já, filhos. Vou trabalhar. Trago lanche.” “O.K., mamãe. Até já.” e não voltou. A frase é pequena. É a mesma de todas as mães do mundo. Voltou a casa — só que voltou em caixão. Voltou notícias nas redes sociais. É assim que dói um país: em sussurros de panela fria, em camas vazias, em crianças que repetem “até já” sem saber que nunca mais haverá um “já”. Não era uma civis qualquer: era um rosto da autoridade que, pela sua morte, nos devolve uma pergunta simples e brutal: onde vamos como país? As respostas têm de ser tão duras quanto a verdade. E a primeira verdade é esta: as mortes de polícias em Moçambique não cessarão enquanto a Polícia da República de Moçambique (PRM) continuar a servir interesses e não a República.
Cinco agentes da PRM mortos nos últimos meses; morte dentro da viatura; rumores de “purga interna”; sussurros que apontam a colegas, chefias, “ajustes de contas”. Não é estatística. É tragédia. Não é só crime. É aviso. Quando quem deve proteger morre à bala, a pergunta que todos fazemos é simples e a mesma e aterradora: aonde vamos como país? Esta é a esfinge que nos ronda: quando a própria força que deveria proteger tornou-se alvo, a paz é apenas um rótulo. A Segurança Pública deixou de ser prioridade e virou moeda de troca, arma de intimidação e instrumento de luta interna. Albert Camus escreveu, em A Peste, que “a única maneira de lutar contra a peste é a honestidade.”
Mas a honestidade é o que mais falta à nossa República. O Estado esconde, o governo relativiza, e a polícia — essa força que deveria proteger-nos — tornou-se o próprio campo de batalha. A comandante Leonor Inguane, alvejada dentro da sua viatura, é o símbolo trágico desse colapso interno. Dizem que era esposa do ex-comandante Bernardino Rafael. Outros dizem que havia rivalidades entre chefias. Chamam-lhe “purga interna”. Eu chamo-lhe autodestruição institucional. Nas ruas, nas redes, a versão popular corre mais rápido que o comunicado: “foi o marido”; “foi um ajuste interno”; “foi rixa de família”; “foi política”. Tudo se diz. Tudo se suspeita. Tudo cheira mal. E no cheiro desliza a verdadeira acusação: quem mata entre nós tem sempre mãos que ninguém quer ver. Há uma febre que percorre as conversas: “bastou darem-lhe 100 mil prontos.” “Vendem as almas por uma prenda e um cargo.” E é assim que a política vira feira — promessas por senhas de ração, votos por favores, vidas por silêncio. Dizem que a comandante tinha sido nomeada há um mês. Dizem que estava nos cuidados intensivos. Dizem que a filha de fulano chorou no mercado. Digo eu: contar o que dizem não é provar o que aconteceu. Isto não impede, porém, que a sociedade sinta o cheiro de uma trama. E quando o povo cheira trama, a cidadania padece. O antigamente respeito institucional transformou-se em troca pública: um gesto e a impunidade sorri. Quando a polícia começa a matar a própria polícia, o país já ultrapassou o ponto de retorno. E a pergunta que deixo é simples: que país é este, onde os que juram proteger-nos vivem com medo dos próprios colegas?
Se queremos reduzir e, finalmente, acabar com os assassinatos de polícias em Moçambique, há três verdades que devemos assumir já e essas mortes repetidas revelam três pragas interligadas: Politização da corporação. Quando a polícia deixa de ser instituição republicana e passa a ser instrumento ao serviço de facções políticas, perde neutralidade e ganha inimigos internos. Impunidade e redes de poder. Quem controla armas, quem decide promoções, quem distribui favores — esses centros de poder transformam-se em sentença quando caem em conflitos. E Falhas institucionais de inteligência, investigação e protecção. A polícia não está preparada — institucionalmente — para investigar e proteger os seus.
Dizer que “acabamos com isto com um golpe como tal país fez” é atalho perigoso. Golpes e rupturas só substituem um poder por outro; não resolvem o problema da impunidade nem reconstroem confiança. A solução passa por reformas de Estado, por investigação e por responsabilização jurídica, não por armas.
O que é uma Polícia Republicana? É uma instituição que obedece à lei e a Constituição, não a caprichos; que protege o cidadão independentemente da cor política; que promove e castiga por mérito e prova; que presta contas ao Parlamento, ao Ministério Público e à sociedade civil. Até que a PRM deixe de ser vista como instrumento de facção, haverá motivações internas para mortes, retaliações e “limpezas”. Até que a PRM seja isso, os ataques internos continuarão — porque quem tem acesso a armas e privilégios faz política com a bala.
Mas transformar a PRM exige medidas concretas e imediatas — não sermões: Medidas urgentes (próximas 72h – 30 dias). Comissão de inquérito independente e pública: estabelecer, já, uma comissão com juízes, representantes do Ministério Público, Ordem dos Advogados, MISA, e observadores internacionais (p.ex. INTERPOL/União Africana). Investigar cada homicídio de agente com prioridade máxima e divulgar resultados preliminares periódicos. Protecção imediata da família da vítima e de testemunhas: abrigo, escolta e anonimato judicial, para evitar mais tragédias e êxodos forçados. Preservação de cenas e provas forenses: proibir manipulação, abrir cadeia de custódia pública e convidar peritos externos quando a capacidade local for insuficiente. Auditoria urgente do acesso a armamento: inventário nacional das armas em circulação, verificação de saídas e entradas, e investigação de desvios. Quem tem armas fora do canal oficial? Quem as fornece?
Reformas estruturais (médio prazo). Despolitização das nomeações: promoções e transferências baseadas em critérios públicos, quadro de avaliação verificável e comissões mistas de revisão. Reforço do serviço de investigação interna (corregedoria): com independência real, pessoal treinado e mecanismos de denúncia seguros para agentes que queiram expor redes corruptas. Remuneração e bem-estar: combate à corrupção passa por devolver dignidade — salários, equipamento e apoio social reduzem tentações. Contratação e formação: padrão profissional, formação permanente em direitos humanos, investigação criminal, anti-corrupção e policiamento comunitário. Transparência e responsabilização: relatórios públicos trimestrais sobre homicídios contra agentes, processos disciplinares e eixos de reforma.
Mecanismos políticos e judiciais. Responsabilidade política clara: ministros e comandantes devem explicitar o que sabem; o Parlamento tem de convocar sessões públicas para escrutínio. Tribunal militar/judiciário ágil: agilidade processual sem subtrair o direito à defesa — impunidade é o convite ao próximo crime. Recuperação de recursos desviados: rastrear e recuperar fundos públicos (incluindo do fundo soberano) para financiar reconstrução institucional e programas sociais nas áreas afetadas.
Mobilização social e internacional. Sociedade civil em vigilância: sindicatos, igrejas, associações de veteranos e media têm papel central em exigir transparência e em proteger testemunhos. Apoio internacional técnico: perícias forenses, formação investigativa e pressão diplomática para garantir imparcialidade.
Por isso dizer que acabamos com isto se a PRM se tornar republicana não é retórica. É um diagnóstico. A polícia republicana não se faz de um dia para o outro: é fruto de vontade política, de pressão da sociedade e de sacrifício institucional. Se a PRM continuar a servir interesses de clãs e facções, a matança continuará — de baixo para cima, por dentro.
Finalmente: não nos iludamos com soluções simplistas. Não podemos aplaudir golpes, e não podemos substituir a lei por fadigas de rua. A solução é fortalecer a lei, aumentar a transparência, garantir que cada crime contra um agente seja investigado, julgado e sancionado — com publicidade. Só assim restauraremos a autoridade legítima. Só assim faremos com que os agentes possam ir e voltar do trabalho sem voltar em caixão. A paz não virá de dentro das balas. Virá do Estado que se recusa a ser parceiro da violência. E virá de um povo que exige, com vigor, que a sua polícia seja, finalmente, republicana.
Pergunto de novo: queremos uma polícia que mate ou que proteja? Queremos um Estado que pague com sorrisos e selfies enquanto os corpos acumulam, ou um Estado que pague com justiça e transparência? A resposta define se ainda somos uma República ou apenas um território onde se troca poder por sangue.
E termino com um aviso claro: Se a PRM continuar a servir interesses fechados — e se o Estado continuar a proteger figuras que operam acima da lei — a violência interna não será feita para acabar: será feita para limpar fichas. E quando a limpeza se transforma em prática corrente, o perigo não ficará só dentro da polícia: estender-se-á à sociedade inteira.
