Logo ao chegar na Av. Eduardo Mondlane, local do protesto, percebi que a “recepção” seria calorosa. A polícia, com seu habitual sorriso frio e armas reluzentes, estava mais preparada do que os próprios manifestantes. Um amigo ao meu lado, segurando um cartaz que dizia “Queremos Justiça!”, sussurrou: “Você acha que eles vão nos ouvir?” Eu ri. Não por humor, mas pela ironia. Em Moçambique, o som do gás lacrimogéneo grita mais alto do que qualquer palavra.
Enquanto marchávamos, veio o primeiro sinal do dia: um comandante levantou o megafone e, com a autoridade de quem sabe que nunca será contestado, ordenou que dispersássemos. “Estamos aqui pela ordem pública,” disse ele, com uma serenidade quase cómica, enquanto atrás dele uma fileira de blindados lembrava que “ordem pública” é um conceito muito flexível.
E então veio o momento. O primeiro disparo. Não contra nós, mas contra o céu, como se quisessem alertar as aves do que estava por vir. Eu me abaixei reflexivamente, mas percebi que o perigo real não era o projéctil de borracha, ou bala verdadeira mas sim era o discurso. A narrativa oficial, que no dia seguinte nos chamaria de vândalos na TVM e em canais de TV, já estava escrita. “Querem desestabilizar o país,” eles diriam, enquanto apagavam com gás lacrimogéneo as últimas palavras de quem só queria ser ouvido.
O resto do dia foi um borrão de correria, tosses e olhos ardendo. No final, sentei na calçada ao lado de outros sobreviventes. Um deles, de rosto coberto de fuligem, comentou: “Eles disseram que estamos livres para protestar. Só não avisaram que liberdade aqui vem com preço e geralmente, é a nossa pele que paga.”
E assim ficou claro: se a bala não te acertar, o discurso certamente vai. Porque, em Moçambique, o verdadeiro perigo não é ser ferido pela força, mas ser silenciado por uma bala.
Dedos D’eus