Desde Hobbes, Locke e Rousseau aprendemos que o Estado civil nasce precisamente para impedir a vida em estado de natureza — esse mundo caótico onde o medo é constante, onde o mais forte domina, onde o indivíduo vive exposto à guerra permanente. É irónico, quase trágico, que séculos depois eu tenha de recordar ao meu próprio dito pelos seus do presidente o fundamento filosófico mais básico da criação do Estado: proteger vidas humanas. É para isso que existe poder político. É por isso que elegemos governantes. É para isso que o Estado recolhe impostos, controla as forças armadas e se apresenta como representante da soberania nacional.
Aliás, como de costumeiro, todavia, escrevo estas palavras como cidadão, como leitor atento da história política e como alguém que acredita profundamente que o Estado existe para proteger, não para ocultar a dor dos seus. E como comecei ao lembrar aquilo que os pensadores contratualistas — Hobbes, Locke e Rousseau — afirmaram quando fundamentaram o nascimento do Estado civil: o poder só faz sentido se garantir segurança, dignidade e protecção colectiva. Este princípio simples, quase primitivo na filosofia política, deveria ser a base de qualquer líder que compreende o peso de governar vidas humanas. Embora não saiba como governar. Mas quando ouço o Daniel Chapo afirmar que não há terrorismo e que não existe guerra em Cabo Delgado e Nampula, pergunto-me sinceramente se leu alguma vez esses contratualistas, ou se o conceito de Estado que governa é apenas um discurso pronto, moldado para microfones e cerimónias oficiais com seu grupinho enquanto muitos moçambicanos vêem, sentem e enterram — percebo o quanto nos afastámos da ideia de Estado civil. Porque o contrato social não funciona quando o governante vive num mundo imaginário, e o povo vive num mundo em chamas. O contrato social colapsa quando o Estado se torna perito em discursos, mas analfabeto em realidade
Porque, Senhor Chapo, a verdade é que o Estado que os contratualistas imaginaram — aquele que justifica renunciar ao estado de natureza em troca de protecção — não é o Estado que o senhor descreve nos seus discursos optimistas. A realidade, cruel e incontornável, é outra: bases terroristas foram descobertas em Memba; populações foram expulsas com violência extrema; zonas ricas em recursos minerais foram tomadas por terroristas; carros queimados, moageiras destruídas, comunidades traumatizadas, ataques cirurgicamente pensados para fins económicos — tudo isto afirmado pelo seu governador Abdula, não pelos “inimigos da pátria” como dizem, não por “desinformadores internacionais”, mas por um membro do seu próprio grupo dito por vós governo.
E então, digo eu, como pode declarar que não existe terrorismo onde há bases terroristas? Como pode negar a guerra quando há ataques, mortes, fugas e destruição? Que tipo de leitura política faz o senhor? Que livros folheia nos seus momentos livres? São manuais de comunicação pública? São guias de motivação? Livros de “como falar em público”? Ou são catálogos de frases prontas para discursos de ocasião? Porque se você tivesse realmente lido os contratualistas, saberia que o primeiro dever de um governante é reconhecer a realidade, não pintá-la com verniz político. Se tivesse lido Hobbes, compreenderia que ignorar o medo do povo é regressar ao estado de guerra. Se tivesse lido Locke, entenderia que o poder existe para servir, e quando falha, perde legitimidade moral? Lá na Ponta Vermelha não tem livros políticos que pode o ajudar a ver a realidade? Porque o país, infelizmente, precisa de algo mais profundo do que técnicas de falar bem. Precisa de alguém que leia o sofrimento do povo, que interprete a realidade com a sobriedade que um líder deve ter, que compreenda o peso filosófico e moral de cada vida perdida.
Os contratualistas ensinaram que os governados confiam no governante porque este garante a vida. Mas como confiar quando o discurso oficial contradiz o testemunho real dos governantes provinciais, das populações aterrorizadas, dos deslocados que caminham quilómetros em quilómetros fugindo de cenários de horror? A teoria do contrato social cai por terra quando a palavra do governante se torna mais importante do que a dor do governado. E é nisto que reside o maior perigo: o Estado não colapsa primeiro pelas armas, mas pela negação da realidade.
O seu governador de Nampula descreveu bases terroristas instaladas ao lado de recursos minerais; descreveu ataques estratégicos, não aleatórios; descreveu terror usado como ferramenta para esvaziar comunidades. Isto não é retórica — é facto. E enquanto o senhor sai de Maputo e afirma que “não há guerra”, “não há violação dos direitos humano”. O contraste é tão absurdo que parece que existem dois Moçambiques: o Moçambique do dito Presidente, feito de slogans, e o Moçambique real, feito de medo, fuga e cinzas e a verdade teimosa resiste, tal como as famílias que enterram mortos sem a presença de qualquer autoridade que lhes ofereça conforto ou explicação. O povo de Cabo Delgado e de Nampula não vive de discursos; vive de sobrevivência. A guerra, para eles, não é tema político — é ambiente.
Eu pergunto directamente, sem medo: como pode o senhor afirmar que não há terroristas, quando o teu próprio governador — membro do próprio grupo — afirma claramente que sim, existem bases, ataques, destruição e ocupação estratégica? O que explica esta contradição grotesca? Incompetência? Desinformação interna? Negação voluntária? Ou apenas a velha necessidade de proteger a imagem enquanto o povo protege a própria vida?
E ainda é aqui que a minha crítica se torna pessoal, profunda e sem reservas: Senhor Chapo, pergunto-lhe abertamente — que país o senhor está a ver? Porque certamente não é o mesmo país que milhares de moçambicanos enfrentam todos os dias com medo, com desamparo e com uma sensação amarga de abandono. Um líder que nega a existência de terror não está apenas enganado — está filosoficamente desalinhado com a sua missão fundamental. É como se governasse um país imaginário. Um país onde a dor não chega, onde a verdade é filtrada, onde a realidade deve ajustar-se ao discurso, e nunca o contrário.
O Estado nasce para proteger, mas quando nega aquilo que precisa proteger, transforma-se num mecanismo de distanciamento. E esse distanciamento, senhor Chapo, dói mais do que os próprios ataques. Dói porque significa que o país que deveria abraçar o seu povo virou o rosto.
O povo de Memba, Palma, Mocímboa da Praia, Muidumbe, Macomia, Quissanga e tantas outras regiões não precisa que o senhor lhes diga que não há guerra — eles vivem a guerra no corpo. Não precisam que o senhor lhes diga que não há terroristas — eles enterram as vítimas desse terrorismo. Não precisam que o senhor lhes diga que não há violações — eles testemunham as violações da sua dignidade todos os dias.
E eu escrevo isto com indignação intelectual e emocional, porque um Estado que nega a dor do povo não é apenas ineficiente: é moralmente falido. Um Estado que se refugia em discursos triunfalistas enquanto governadores reportam violência organizada não é apenas cego: é perigoso. E um dito Presidente que insiste em criar uma realidade paralela não tem noção da profundidade filosófica da sua própria irresponsabilidade.
Rousseau dizia que quando o governante deixa de ver o povo, o Estado entra em corrupção. Hoje, vejo um dito presidente que não vê o povo, e um povo que vê demasiado bem o vazio da sua liderança presencial. Vejo uma elite que lê relatórios, não realidades; que celebra vitórias abstratas, enquanto o povo luta pelas poucas vitórias concretas — sobreviver mais um dia.
E isto não é oposição.
Não é ódio.
Não é política barata.
É filosofia aplicada à vida real.
É um pedido, um alerta, uma verdade que o senhor precisa de ouvir — porque nós já estamos cansados de ouvir a sua versão da mentira todos os santos dias nos seus discursos.
Ainda não sei que tipo de discurso que este senhor utiliza…







