Miguel Osório[1]
Enquanto políticas globais se articulam para erradicar o HIV até 2030, uma epidemia silenciosa avança entre juventudes urbanas em contextos de baixa e média renda: a glamorização do sexo transacional, a camuflagem do trabalho sexual nas redes sociais e o uso do capital erótico como estratégia de mobilidade social e pertencimento.
Nas últimas décadas, os modos de exposição ao HIV e às ITS’s sofreram transformações profundas. A antiga geografia do risco, antes localizada em “hotspots” físicos, migrou para os ecossistemas digitais, onde plataformas como Instagram, TikTok, Telegram e OnlyFans funcionam não apenas como vitrines corporais, mas como espaços de negociação implícita de sexo, frequentemente envolvendo homens mais velhos, casados e com maior poder económico.
Esses encontros mediados pelo status e pelo desejo operam à margem dos serviços formais de prevenção e cuidados. Estudos mostram que o uso frequente dessas plataformas está associado a uma probabilidade 11 vezes maior de envolvimento em comportamentos sexuais de risco (Kuate-Defo, 2004).
Diferentemente do trabalho sexual tradicional, essas práticas deslocam-se para os feeds, stories e redes privadas de contacto, onde filtros, likes e mensagens directas constroem uma cartografia invisível de risco. Nesses espaços, os corpos tornam-se vitrines e a estética do prazer encobre relações profundamente mercantilizadas.
Jovens utilizam fotos sensuais, mensagens codificadas e pseudónimos como “modelo VIP” ou “acompanhante de luxo” para ocultar a oferta de serviços sexuais, comercializando acessos – ao corpo, à presença e à imagem – num mercado marcado por assimetria de poder e exposições silenciosas ao HIV e às ITS’s. Esse padrão ecoa achados de pesquisas com trabalhadores do sexo online, que relatam múltiplos parceiros, volume elevado de transações e práticas de risco, incluindo sexo anal e oral sem protecção (Mimiaga et al., 2008).
Contudo, grande parte dessas jovens não se identifica como trabalhadora do sexo, o que as afasta de serviços essenciais de prevenção e tratamento (Masvawure et al., 2015). Evidências epidemiológicas reforçam a vulnerabilidade associada a essas práticas online, revelando altas prevalências de ITS’s — por exemplo, 40% das consultas clínicas de male escorts resultaram em diagnóstico de ITS (Mimiaga et al., 2008).
Além disso, observa-se uso inconsistente de preservativos: em uma amostra superior a 500 participantes, menos de 60% relataram uso regular, e cerca de 3% afirmaram nunca usar (Ginting, G. M., Girsang & Nasution, 2025). A OMS confirma essa tendência, estimando que trabalhadores do sexo têm risco até 30 vezes maior de viver com HIV do que a população geral.
O quadro torna-se ainda mais grave quando essas “novas profissionais” passam a recrutar meninas mais jovens, muitas vezes menores de idade ou em extrema vulnerabilidade, oferecendo a promessa de um estilo de vida glamoroso. O que permanece oculto são os custos reais: exposição elevada a ITS’s, traumas, violência, dependência financeira e emocional, risco de HIV — e, sobretudo, a perda progressiva do direito de dizer não. A pressão de clientes — especialmente sugar daddies — e o uso de álcool ou outras substâncias reduzem a resistência e intensificam desigualdades de género, idade e poder (Dana, Adinew & Sisay, 2019).
Na logica do pay-for-play, mostram que mulheres consideradas “de luxo”, se sentem pressionadas a corresponder sexualmente após receberem presentes ou apoio material, o que compromete a negociação do uso do preservativo e obscurece a natureza exploratória dessas dinâmicas (Wamoyi et al., 2010). Participantes descrevem essas relações como “comprar e vender sexo”, envoltas em eufemismos que evitam a identificação como prostituição (Gunnarsson & Strid, 2021). Do ponto de vista das jovens, a transacção é explícita: afecto sem contrapartida económica não tem valor, reforçando a percepção do corpo como mercadoria (Silberschmidt, 2001).
Homens jovens com baixo poder aquisitivo também participam dessa dinâmica. Quando recebem valores extras — bónus, salários ou lucros inesperados — muitos investem no “consumo do corpo” como forma de afirmação masculina. O problema surge quando se envolvem com mulheres desse circulo, esses jovens tornam-se, sem perceber, vectores intermediários que podem transmitir HIV e outras ITS’s às suas parceiras estáveis ou gestantes, criando uma bolha silenciosa de risco.
O actual ecossistema sexual é marcado por um “fetiche preventivo”, no qual muitos jovens passam a confiar excessivamente em métodos contraceptivos femininos ou biomédicos — como implante, DIU, Depo, testagem rápida, PrEP, PEP ou TARV — acreditando que estes substituem o uso do preservativo.
Essa percepção e “fé” leva a liberalização geral do “widas” e ignora riscos centrais, como janela imunológica, toma irregular dos medicamentos e a não detecção de outras ITS’s pelos testes de HIV. Esse quadro é preocupante, considerando que mais de 1 milhão de ITS’s são adquiridas diariamente (OMS, 2023) e que pessoas com ITS’s têm 3 a 5 vezes mais probabilidade de adquirir HIV (UNAIDS, 2023); infecções como clamídia ou gonorreia podem evoluir rapidamente para quadros graves, como DIP e infertilidade.
Ainda assim, as ITS’s permanecem invisíveis nas discussões sobre saúde sexual, em parte porque o HIV é percebido como o “único inimigo central”, enquanto vergonha, automedicação e medo dos serviços dificultam o diagnóstico. A expansão do autoteste de HIV, embora aumente o acesso, traz desafios quando realizada sem apoio profissional: um resultado positivo recebido em isolamento pode gerar forte impacto emocional e atrasar o início do TARV, ampliando riscos individuais e colectivos.
Diante desse cenário, torna-se urgente renovar as estratégias de saúde pública. É preciso ir além do foco exclusivo no HIV, ampliando o rastreio e tratamento de todas as ITS’s. Também é fundamental reconhecer as novas formas de trabalho sexual – escorts online, sugar relationships e sexo transacional mediado por redes sociais – e incluí-las nas políticas de prevenção e protecção. Somente uma abordagem integrada, que una saúde, género, economia, tecnologia e justiça social, poderá enfrentar essa “epidemia invisível” e transformar práticas de risco em relações mais seguras e conscientes.
[1] Pesquisador associado, Centro de Estudos de Riscos e Desenvolvimento – CERD






