“Kupsvala nyama ahikupsvala mbilu.”
‘Quem nasce corpo não nasce coração.’
(Adágio popular)
Principio o presente ensaio com um provérbio[1], porquanto que se faz necessário para a compreensão não só dele próprio como também de sua relação com a abordagem que ora se desenvolve. Aliás, “a percepção da real dimensão da literatura moçambicana passa, para além da observação do contributo de modelos literários importados – escrita –, também pela consideração dos elementos autóctones – a oralidade.” (Matusse, 1998:54) (grifos nossos)
Roberto Chitsondzo (doravante RC), através do seu engenho artístico, faz ode, no seu “Kwiri”, à mulher-mãe, por um lado, para consolá-la, por outro, para chamá-la à razão sobre sua missão na formação do Homem. Ou seja, não basta gerá-lo, é preciso moldá-lo constantemente.
Percebe-se, pelo título, que estamos perante uma abordagem comparatista, de cruzamento entre a Literatura (devido às metáforas e ao aforismo) e Outras Artes, no caso concreto, a música (“Kwiri”) na qual este casamento subjaz.
“As relações da literatura com as belas-artes e com a música são extremamente variadas e complexas. Por vezes, a poesia colhe inspiração na pintura, na escultura. As outras obras de arte podem, tal como os objectos naturais ou as pessoas, constituir temas para a poesia. Esse facto de os poetas terem descrito peças de escultura, pintura ou mesmo música não oferece qualquer problema teórico particular.” (Wellek e Warren, 1971:157)
Ora, na música em pauta, o sujeito poético faz um cruzamento entre a metáfora do almofariz e aforismo, asseverando que a barriga (ou ventre) de uma mãe equipara-se ao almofariz, no qual se esmaga cebola, matapa, entre outros alimentos. Entretanto, cada alimento ou resultado tem o seu sabor e/ou valor nutricional.
Assim, uma mãe pode dar à luz vários filhos, encubados no mesmo ventre, mas nunca serão iguais; cada um terá o seu carácter, a não ser que se moldem, conforme se pode depreender na primeira estrofe, quando entoa:
“Khwiri la mamani (i) churi nalonawo (…)” (RC, s/d), i.e., ‘A barriga/ventre da mãe (é) também almofariz (…)’, ou seja, o sujeito poético começa por frisar a metáfora que atravessa globalmente o seu poema e, seguidamente, para explicitá-la, entoa “churi likandza tinyala,/ likandza nimathapa,/ likandza nisvighema,/(…),/ kambe kud’andzeni, hinkwasvo asvifani/ (…)” (RC, s/d), traduzindo, [‘no almofariz pila-se cebola,/ pila-se matapa,/ pila-se mandioca seca/ (…),/ mas, na hora de degustar, o sabor é diferente/ (…)’]
Vale lembrar que a metáfora, enquanto figura de linguagem, consiste na “substituição, transferência, translação, transporte de significados de um signo linguístico para outro (…)” (Da Silva, 2009:53)
Pelo que, associado a esta metáfora, está o aforismo (também designado provérbio) que, segundo Noa (1998:106), é uma sentença que, em poucas palavras, expõe uma verdade moral de grande alcance. Além de breve e sintética pode ser, à primeira vista, obscura.
Outrossim,
“Os provérbios não são obras secundárias e, além disso, revelam-se como sendo belos “resumos” de longas e amadurecidas reflexões, resultado de experiências mil vezes confirmadas. O caráter anônimo dos provérbios traduz a sua profunda inserção no âmago da experiência e da vida coletiva, depois de longas rodagens e experiências.” (Aguessy, 1977, p.118)
Portanto, ‘a barriga/ventre da mãe é também almofariz (…)’ (RC, s/d) é, evidentemente, metáfora de “Kupsvala nyama hayi kupsvala mbilu.[2]” Ou, simplesmente, ‘Quem nasce corpo não nasce coração.’ (tradução directa)
Ou seja, existe, entre a metáfora do almofariz e o aforismo retro exposto, uma relação intrínseca, pois que, conforme se pode depreender das duas faces, há, no aforismo, um “verdadeiro exercício de calculismo” (Noa, 1998:107), pretendendo-se, com a metáfora e o aforismo, por um lado, fazer ode à mulher-mãe, pois, sem ela, os filhos não existiriam; mas, por outro, consolá-la e chamá-la à razão sobre sua a missão na construção do Homem, já que, apesar de advirem do mesmo ventre, mãe não dá à luz o coração, comportamento… somente o filho(a), por isso, não basta gerá-lo, é preciso moldá-lo constantemente.
Na sequência, como que em prova da nossa abordagem nos parágrafos anteriores, o sujeito poético entoa: “(…) svifana nawena, mamani,/ upsvalile svinene,/ (kambe) nhloko ni nhloko,/ we mamani, lini tshamela layona,/ mun’wana ni mun’wana, mamani,/ ani tshamela layena,/ nhloko ni nhloko, mamani,/ lini tshamela layona (…)” (RC, s/d) (destaque nosso)
Traduzindo ‘(…) o mesmo acontece consigo, mãe,/fez muitos filhos,/ (mas) cada cabeça,/ mãe, é uma cabeça[3],/ cada um deles, mãe/ tem seu modus vivendi/ cada um, mãe,/ tem a sua forma de viver (…)’
E, seguidamente, riposta: “Khwiri la mamani (i) churi nalonawo (…)” (RC, s/d), para frisar a metáfora que permeia a música (ou poema?), i.e., ‘A barriga/ventre da mãe é também almofariz (…)’
À guisa de conclusão
Portanto, Roberto Chitsondzo, através do seu engenho artístico, faz ode, no seu “Kwiri”, à mulher-mãe, por um lado, para consolá-la, por outro, para chamá-la à razão sobre sua missão na formação do Homem, evidenciando, assim, o cruzamento entre a Literatura e Outras Artes, no caso concreto, a música.
BIBLIOGRAFIA
ACTIVA:
- “Kwiri” (material audiovisual). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PpC05ZxkDRE
PASSIVA:
- NOA, F. (1998). A Escrita Infinita. Maputo: Livraria Universitária – UEM.
- MATUSSE, G. (1998). A Construção da Imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Maputo: Livraria Universitária – UEM.
- AGUESSY, H. (1977). “Visões e percepções tradicionais”. In: Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70.
- Da Silva, C. R. M. (2009). Xiboniboni: A metáfora dos espelhos em Niketche, de Paulina Chiziane. RJ: UFRJ, Dissertação de Mestrado.
- WELLEK, R. & WARREN. “A. Literatura e outras artes.” In.: Teoria da literatura. 2. Ed. Traduzido por José Palla e Carmo. SL: Publicações Europa-América, 1971. Pp. 157-170.
[1] Adágio popular ou, conforme Noa (1998) considera, aforismo.
[2] Adagio popular ou aforismo.
[3] i.e., cada um tem o seu comportamento.






