Em Moçambique, temos vivido tempos marcados por um debate público cada vez mais politizado e extremado. De um lado, estão os que criticam sistematicamente, ignorando ou minimizando os avanços alcançados; de outro, os que se recusam a reconhecer qualquer falha, mesmo diante de evidências claras — destacando apenas as realizações.
Por Nelson Charifo[1]
Essas abordagens redutoras e polarizadas — umas que enaltecem apenas os aspectos positivos, negligenciando fragilidades e desafios, e outras que se concentram exclusivamente no que falta fazer, desvalorizando conquistas reais — comprometem a construção de consensos e a convergência de esforços indispensáveis ao desenvolvimento de Moçambique.
Vale destacar que, quando a crítica perde sua intencionalidade construtiva, pode degenerar em compulsão — enfraquecendo a confiança coletiva e comprometendo a capacidade de dialogar com abertura e empatia. Por outro lado, a negação persistente dos erros leva à perpetuação de falhas, à alienação social e à erosão institucional.
É urgente resgatar a coragem de reconhecer falhas — próprias e alheias — sem cair no vitimismo, nem na arrogância. A crítica não deve ser um fim em si mesma, mas um caminho para o aprimoramento pessoal e colectivo. E admitir erros não diminui ninguém — pelo contrário, engrandece. A busca pelo equilíbrio, pelo meio-termo, é essencial para a construção de uma visão comum e de um projeto nacional que seja próspero, justo, inclusivo, equitativo e estável.
Ora, edificar um Moçambique justo, democrático e sustentável é uma tarefa colectiva. Entretanto, a existência dessa fragmentação impacta negativamente na construção e solidificação do ideal de nação e na viabilização do tão almejado desenvolvimento. Este, por definição, é um processo endógeno — obra dos próprios interessados — cuja concretização exige o envolvimento activo de todas as forças vivas da sociedade (Furtado, 1974; Krugman, 1991; Boisier, 1996; Barquero, 2000; Amaral, 2021; Sachs, 2002).
O renomado economista e professor brasileiro Jair do Amaral Filho, na sua obra Desenvolvimento Local: Uma Estratégia de Transformação Social (2001), argumenta que o desenvolvimento endógeno exige articulação entre sociedade civil, sector produtivo e o Estado, com foco na aprendizagem colectiva e inovação social. Essa visão encontra eco no pensamento de Amartya Sen, vencedor do Prémio Nobel da Economia em 1998, que em sua obra Desenvolvimento como Liberdade (1999) defende que “o desenvolvimento deve ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”. Para Sen, sem liberdade política, acesso à educação, saúde e segurança, o crescimento económico por si só não é desenvolvimento.
Essa visão inclusiva do desenvolvimento está bem expressa nas palavras do Presidente Samora Machel: “Na luta pelo desenvolvimento de Moçambique, somos todos necessários.”
Essa realidade se agrava quando o diálogo nacional é capturado por lógicas binárias e visões fechadas, que tendem a deslegitimar sistematicamente tudo o que não se alinha com determinadas posições ideológicas ou partidárias. Vale lembrar que ninguém, por mais sábio ou inteligente que seja, detém o monopólio da verdade ou da razão. A esse respeito, o filósofo Isaiah Berlin, na sua obra Two Concepts of Liberty (1958), defende que a liberdade, assim como a verdade, é plural — e tentar reduzi-la a uma única fórmula é o primeiro passo para a tirania. A aceitação dessa pluralidade da verdade fomenta o diálogo, a tolerância e o respeito por diferentes pontos de vista, embora também possa trazer desafios para a construção de consensos e a distinção entre factos e opiniões.
No contexto das celebrações dos cinquenta anos da independência nacional, foi evidente o aprofundamento dessa polarização no seio da sociedade moçambicana. Essa tendência manifesta-se, em grande medida, na politização excessiva de quase todos os acontecimentos da vida pública e na predominância de discursos e leituras simplificadas, que empobrecem a complexidade da realidade nacional.
Na condição de cidadão atento e comprometido com uma perspectiva mais conciliadora, agregadora e construtiva, preocupa-me a cristalização de uma cultura de confronto, em que temas de interesse público são convertidos em campos de batalha político-partidária. O resultado são leituras parciais e fragmentadas da realidade, nas quais cada lado destaca apenas os elementos que lhe são convenientes — sacrificando a visão holística necessária para enfrentar os desafios reais.
Como moçambicanos, se queremos projetar um futuro comum e viável, torna-se imperativo criar espaços plurais de escuta e construção, onde a diferença de opinião não seja tratada como ameaça, mas como oportunidade para enriquecer soluções e fortalecer o espírito democrático. Moçambique precisa de pontes, não de trincheiras. Nesse espírito, o sociólogo Norberto Bobbio, na obra O Futuro da Democracia (1984), adverte: “O problema central da democracia não é eliminar o conflito, mas saber geri-lo civilizadamente.”
No mesmo diapasão, o professor moçambicano Brazão Mazula, na obra Eleições, Democracia e Desenvolvimento (1995) chama a atenção para a urgência de democratizar o pensamento, partindo do pressuposto da relatividade da verdade. Defende que a verdade não é propriedade de um só, mas deve ser buscada no pensamento do outro, por meio do diálogo. Mazula também adverte que, em democracia, o adversário político não deve ser tratado como inimigo a ser eliminado, mas como parte legítima do processo democrático plural.
A tendência persistente de politizar quase tudo é claramente um forte obstáculo à edificação de um Moçambique mais coeso e progressista. A politização exacerbada tende a converter-se, na prática, numa forma sutil — mas eficaz — de exclusão política, que frequentemente se desdobra em outras formas de marginalização social e institucional.
É particularmente preocupante constatar que até elementos que deveriam unir os moçambicanos — como o apoio às seleções nacionais, a celebração da independência ou o Dia da Paz — se tornaram palco de disputas partidárias. Mais grave ainda é a politização do conflito armado em Cabo Delgado, onde se observa a formação de “claques” ideológicas: umas, alimentando simpatia pelas forças insurgentes ou demonstrando indiferença aos ataques hediondos desses grupos; outras, associando-se exclusivamente às Forças de Defesa e Segurança, convertendo a defesa nacional numa bandeira partidária. Essa fragmentação revela uma crise profunda nos alicerces simbólicos e cívicos da nação.
A pergunta que se impõe é: que país queremos construir? As divergências políticas não deveriam, em hipótese alguma, sobrepor-se aos interesses nacionais. É urgente reafirmar, de forma inequívoca, os interesses da nação — tal como consagrados na Constituição — e garantir que eles não sejam capturados ou distorcidos por partidos, elites ou agendas particulares.
A recorrente confusão entre interesses partidários e o chamado “interesse nacional” tem-se manifestado em múltiplas frentes. Frequentemente, cada grupo político tende a considerar seus próprios objetivos — ou os de suas elites — como se fossem os do país inteiro. Esse vício interpretativo corrói a credibilidade das instituições e enfraquece o pacto social.
É, pois, necessário rever os processos de definição e implementação do interesse nacional. Um exemplo emblemático é a área da educação. A formulação de políticas educacionais deveria decorrer de um consenso amplo e representativo — envolvendo sociedade civil, educadores, famílias, estudantes e órgãos de soberania — e não depender exclusivamente da visão do ministro ou do executivo. Infelizmente, o que se observa é uma sucessão de reformas curriculares desarticuladas, guiadas por mudanças ministeriais, sem debate público profundo ou validação parlamentar. O resultado é visível: a qualidade do ensino tem vindo a deteriorar-se, em vez de avançar. O notável educador e filósofo brasileiro Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido (1970), recorda:“A educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.”
Por fim, a educação deve ser vista como a pedra angular da construção de um Moçambique inclusivo, estável, democrático e desenvolvido. A escola precisa ser, além de um espaço de transmissão de saber técnico e científico, um verdadeiro laboratório de democracia, ética, cidadania, inovação, convivência intercultural, justiça e humanidade. Moçambique precisa de mais pontes, mais diálogo aberto e construtivo, menos divisões radicais e radicalizadas.
[1] Nelson Charifo é Mestre em Ciência Política, Governação e Relações Internacionais e Licenciado em Administração Pública, além de ser Bacharel em Ciências Sociais com especialização em Ciência Política.