Essa exposição indiscriminada, que transforma a dor alheia em espetáculo digital, não apenas desrespeita os mortos como fere vivos e demanda uma reflexão urgente sobre ética, saúde mental e responsabilidade colectiva.
Quando imagens de violência extrema invadem nossas redes sem filtro, consumimos mais do que informação; consumimos trauma. Como alerta o psiquiatra Kenneth Yeager, Diretor do Centro de Trauma da Universidade de Ohio (EUA), “a exposição repetida a cenas gráficas de violência gera trauma vicário, uma condição debilitante que reproduz sintomas de estresse pós-traumático mesmo em quem não vivenciou o evento diretamente” (Yeager, Journal of Psychological Trauma, 2023). Em Moçambique, onde 78% da população acessa redes sociais via telemóveis (CIP, 2024), crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis. A Academia Americana de Pediatria já demonstrou que “a visualização precoce de conteúdo violento está associada a ansiedade crônica, perturbações do sono e dessensibilização moral” (AAP, 2022).
Por Martinho Cumbane – (Licenciado em Biblioteconomia e Documentação -ESJ | Mestrando em Gestão de Mídias Digitais – UEM-ECA)
Alguns defendem o compartilhamento como forma de “denúncia”. Mas como questiona a filósofa Judith Butler, “transformar corpos em espetáculo é uma violência segunda, que reduz seres humanos a objectos de consumo visual” (Quadros de Guerra, 2009). Se desejamos discutir a insegurança em Matola onde dois ataques a agentes ocorreram em uma semana, devemos focar nas causas: impunidade, tráfico de armas, fragilidade institucional. Imagens de cadáveres não geram consciência; geram pornografia da dor, termo cunhado pela teórica da mídia Susan Sontag para descrever “a fascinação mórbida que desconecta a violência de seu contexto político” (Diante da Dor dos Outros, 2003).
Redes sociais como Facebook e WhatsApp operam algoritmos que priorizam engajamento, não ética. Um estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts revelou que “conteúdo gráfico violento tem 3,2 vezes mais alcance que posts comuns devido a mecanismos de viralidade” (MIT, 2024). Mas também somos cúmplices: ao repassar imagens mesmo com “avisos de sensibilidade”, normalizamos a barbárie como entretenimento. Como lembra o sociólogo moçambicano Carlos Serra, “o direito ao luto digno é um princípio cultural africano Ubuntu violentado por essa exposição” (Cultura e Violência Urbana, UEM, 2021).
Por uma Revolução Digital Ética
A solução para essa epidemia digital exige uma acção colectiva e multifacetada. Em primeiro lugar, as plataformas digitais devem assumir sua responsabilidade implementando filtros proactivos para bloquear o transferir um arquivo do seu dispositivo para a internet (upload) de imagens gráficas violentas. O sucesso de plataformas como TikTok em fazer isso demonstra que é viável e tecnicamente imperativo. Em segundo lugar, órgãos reguladores como Autoridade Reguladora das Comunicações de Moçambique (ARECIMO) precisam criar e divulgar canais de denuncias prioritários e eficazes, garantindo que o conteúdo inapropriado seja rapidamente removido. Por fim, e de forma crucial., nos, os usuários, devemos romper a cadeia de voyeurismo digital. Isso significa uma recusa firme em compartilhar essas imagens, a proatividade em denunciar publicações que exponham a dor alheia e, acima de tudo, a protecção das crianças e adolescentes de tamanha exposição desnecessária e prejudicial para saúde mental.
O caso de Manduca não é isolado, embora chocante, não é um incidente isolado. Em 2024, o Centro de Integridade Pública de Moçambique documentou 174 mortes violentas expostas indevidamente em redes sociais (Relatório CIP, Março 2025).
Honrar essas vítimas exige mais do que simples indignação; exige que nos recusemos a transformar sua agonia em mero conteúdo de consumo. Como bem escreveu o Nobel da Paz Amartya Sen, “o desenvolvimento é liberdade inclusive a liberdade de não ser violentado pela imagem da própria morte” (Desenvolvimento como Liberdade, 1999). Que a tragedia de Manduca seja um catalisador para uma revolução digital ética em Moçambique.
Minha formação em Biblioteconomia ensinou: toda informação é memória. Quando clicamos em imagens de morte, construímos bibliotecas digitais de horror. Mas podemos escolher edificar arquivos de dignidade. Como escreveu Ungulani Ba Ka Khosa: “A memória que não cura é veneno”. Que nosso próximo clique seja de rebeldia ética: curtir o silêncio, compartilhar o respeito.