Imagina-se o Zambeze a sussurrar — não mais cantando, mas rangendo nos pedregulhos — e os hipopótamos, perplexos, perguntando-se quem lhes roubou a maré. Não é mero dramatismo: os carregamentos de antirretrovirais que atravessavam estradas poeirentas feitas procissões luminosas tendem agora a emperrar na alfândega, tal qual frango congelado esquecido no cais de Nacala. E sem esse cordão umbilical farmacêutico, a mãe seropositiva torna-se funâmbula sobre abismo, equilibrando o futuro do filho no frágil fio de uma pastilha que já não chega.
Por: Zacarias Nguenha
Kant, lá de Königsberg, ergueria a sobrancelha: “Usa a humanidade sempre como fim, jamais como meio.” Pois o mesmo gesto que poupa trocos no Tesouro norte-americano converte homens distantes em peões descartáveis. Hobbes completaria, com hálito de fumaça sobre o cachimbo: “Que ninguém se espante se o estado de natureza bater à porta, faca entre os dentes.” Povo sem pão nem vacina depressa troca o livro de Camus por qualquer bandeira que prometa barriga cheia, mesmo que a cores berrantes e dogmas estranhos.
A psicologia colectiva, como termiteiro depois do fogo, precisa de tempo para reerguer câmaras e túneis. Maslow já advertira: ausência de necessidades básicas corrói todo o edifício da realização. Suspenso o programa de nutrição escolar, o miúdo da província rebenta a sola das sandálias na marcha para casa, porque a sala de aula perdeu o cheiro da sopa fortificada. E se a fome volta a roncar no recreio, lá se vão álgebra, geografia e sonho de universidade no caudal do estômago vazio.
Contudo, o golpe possui didáctica perversa. Primeiro ensina que depender de uma única fonte é flertar com a cilada: jacaré que confia num braço de rio acorda seco na manhã seguinte. Cabe ao governo caçar alternativas com presteza de corvo marinho: Banco Africano de Desenvolvimento, Global Fund, filantropias de Seattle e tios emergentes de Xangai. Segundo, obriga a remexer gavetas fiscais. O gás de Rovuma, bem auditado, pode render escudos para saúde e educação, se escapar às garras de isenções generosas que fazem corar qualquer moralista. Por fim, recorda a força das raízes. Sem o tractor estrangeiro, resta a enxada — mas também o engenho de quem, há gerações, faz brotar milho em latossolo ingrato.
Há quem festeje o corte como vitória de contas equilibradas. Todavia, mesmo a aritmética tem coração: cada dólar suprimido em território longínquo reencarna em mutação viral que, avião mediante, aterrissa sorrateira em Miami. Chama‐se custo diferido, e costuma chegar com juros. O vírus não carimba passaporte, tampouco respeita rótulo partidário.
Filosoficamente, o acto lembra o mito de Cronos devorando filhos: a superpotência mastiga o futuro global para saciar seu apetite imediato. Mas o tempo, esse velho gozador, não se deixa engolir; engole ele mesmo quem o desafia. Deixar milhões à deriva de febres e gafanhotos corrói a tessitura moral que sustenta alianças, mercados e as próprias praças financeiras que hoje celebram poupança. O dólar brilha enquanto houver quem acredite que ele lastreia não só ouro, mas algum sentido de comunidade humana. Sem isso, vira papel vistoso, pronto a ser soprada às quatro ventanias.
Camus diria que o absurdo reside em querer um mundo justo numa realidade indiferente. Mesmo assim, manda a lucidez empurrar a pedra ladeira acima. E Moçambique, malandro calejado, há-de continuar a empurrar: multiplicar barragens de dados, reinventar cooperativas agrícolas, seduzir investidores que tragam também transferências de tecnologia — não apenas dividendos que evaporam na bolsa de Nova Iorque. A lição é brilha como o Sol de Junho: a solidariedade emprestada é boa, mas a soberania construída dispensa chapéu alheio na primeira borrasca.
Entretanto, não percamos o humor — último reduto de gente que recusa definhar. Se Trump enrolou a mangueira e foi embora, resta‐nos cantar samba na chuva fingida, cutucar o engenheiro do bairro para improvisar bomba manual, arrancar cisterna de plástico de onde ninguém esperava e, quiçá, transformar o velho machimbombo escolar em clínica ambulante movida a óleo de dendê reciclado. Génio e ajustamento: vidro moído vira areia para cimento, casca de camarão vira fertilizante, e promessa vazia vira motivo de piada no quintal.
Eis, portanto, o recado entalhado a estilete em tronco de embondeiro: quem fecha a carteira dos pobres acaba, mais cedo que tarde, a pagar conta maior — juros cobrados pelos mesmos ventos que espalham pólen, mas também pragas.
Afinal, alguém já conseguiu regar um campo inteiro com promessas de austeridade?