Quem são eles, de verdade? São, de facto, marginais de esquina? Ou são os mesmos filhos bastardos do poder — os mesmos rostos conhecidos, os mesmos intocáveis, sob ordens invisíveis de chefes acionistas do terror?
Platão, em sua República, sonhava com uma cidade justa. Hoje, acordamos num pesadelo onde os homens não são regidos pela justiça, mas pela catana. E as noites de Pemba se tornaram uma sombra trágica — o teatro da brutalidade consentida, onde, no escuro, o que comanda não é a lei, mas a ausência dela.
Por: John Kanumbo
Em Pemba, ou seja, todo o país, ninguém pratica violência sem submissão a um senhor oculto. Essa cidade tem donos. Sempre teve. Desde a era colonial até aos tempos modernos de independência comprometida. Quem lhes dá armas? Quem garante que possam invadir casas, violar meninas, arrombar portas com catanas e barras de ferro, e escapar ilesos noite após noite? É possível isso sem cumplicidade estatal?
Em filosofia política, isso se chama governo da excepção. Na teoria política pública, é governança da omissão seletiva. No Contrato Social de Rousseau, é a falência do pacto civil, onde quem deveria proteger, abandona — ou pior, manipula. Na Antropologia e Sociologia, isso se chama engenharia social do medo. Aliás, Maquiavel já dizia, em O Príncipe: “o terror útil é aquele praticado por poucos para benefício de muitos.” Mas aqui em Pemba, o terror não beneficia ninguém além dos seus próprios autores. Quando o medo se torna rotina, a liberdade morre sem testemunhas.
A violência em Cabo Delgado nunca é gratuita. Sempre há um interesse que ela protege. Sempre houve grupos armados civis sob comando de alguém. Primeiro, contra o colono. Depois, na guerra civil. Agora, numa paz podre, serve para manter a população aterrorizada e obediente.
Lucrécio, no seu De Rerum Natura, dizia que nada acontece por desígnio divino, mas pelo caos das partículas. Penso eu: em Pemba, essas partículas são 15 homens armados, com catanas e barras de ferro, a vaguear de bairro em bairro como átomos de violência, colidindo com corpos e portas, destruindo o sono e a dignidade.
É sempre a mesma peça teatral: Os marginais de ocasião. Os intocáveis com nome e apelido, que todos conhecem, mas ninguém toca. Os chefes invisíveis, que financiam e armam. E as autoridades que fingem surpresa. Como pode uma cidade entregue a 15 homens com catanas? Quem autoriza a circulação de armas brancas na madrugada? Quem fecha os olhos nos postos policiais? Quem lucra com o caos?
Esse terror não é um acaso, é um projecto também? Maquiavélico na essência. Permite que as pessoas tenham medo para não exigirem nada. Pessoas com medo não cobram hospitais. Pessoas com medo não pedem escolas. Pessoas com medo não questionam orçamentos. Vivem a lutar pela própria sobrevivência, e nisso, o poder reina absoluto.
Hannah Arendt chamou isso de a banalidade do mal. Aqui, o mal não se apresenta com uniforme de assassino, mas com crachá de autoridade, com mandato, com benção dos que governam e com proteção dos que deveriam proteger a vítima.
A cidade de Pemba virou um laboratório de necropolítica social. Decide-se quem vive, quem morre, quem dorme, quem sangra, quem cala. E digo mais: Quem alimenta esses grupos? Quem são os reais acionistas da violência? Porque, e aqui mora a tragédia, os 15 são apenas a face visível de um poder obscuro que prefere governar pelo medo do que pela legitimidade. A cidade está sem Contrato Social. O pacto foi rasgado. O Estado falhou. E no lugar da lei, brotou a catana.
O que sobra ao cidadão, senão a insônia? Alguns já querem fazer justiça com as próprias mãos. Outros, se rendem à apatia. E o governo, esse, esconde-se atrás das desculpas protocoladas: “Consultaremos as subunidades.” Enquanto isso, os corpos apodrecem no chão e a dignidade se despede sem velório.
Aqui, a banalidade não é de quem mata em nome de ordens, mas de quem se omite em nome da incompetência. As autoridades hesitam, enquanto os cidadãos sangram. O medo tornou-se vizinho de todos. Um novo tipo de terrorismo urbano: sem religião, sem guerra declarada, sem motivo além do poder pela intimidação.
Eu conheço Mahate, conheço Chuiba, conheço Eduardo Mondlane, conheço Gingone. Conheço Muxara, conheço Cerâmica. Em todas, os relatos são os mesmos: Portas partidas. Mulheres violadas. Crianças sequestradas pelo terror. Homens que se escondem onde antes contavam histórias. A cidade virou um grande cárcere a céu aberto. As casas são celas e as ruas são corredores de execução.
Um nhenhe Adinane pescador ontem na praia de Wimbe me disse: “Aqui só o peixe ainda dorme em paz. Os homens, nem o sono encontram mais.” E a polícia? Promete subunidades, promete consultas. Pede paciência. A paciência, senhores, já foi estuprada junto das mulheres e espancada junto dos homens que tentaram resistir.
Como pode um Estado dormir quando seus cidadãos são saqueados, violados e mortos ao lado da praia mais bonita de África? Que segurança pública é essa que se refugia nas gavetas enquanto os bandidos governam a madrugada?
Se fosse Platão, escreveria outro diálogo sobre a covardia dos governantes. Se fosse Lucrécio, descreveria a dissolução molecular da moral pública. Se fosse Hannah Arendt, apontaria a burocracia policial como cúmplice do terror.
Mas eu sou apenas um filho da Baía, que desceu da camioneta para encontrar um campo de medo onde antes havia festa e batuque. E vos digo: se a cidade continuar assim, breve o Grupo 15 deixará de ser 15. Será 30, será 50, será 100, será 200, será 300 até, Etecetera. Porque no ventre do medo, o crime se multiplica.
E os nomes? Os nomes, amigos, mudam.
Já tivemos grupos de assaltantes na época até surgiu esses terroristas, na guerra, no pós-guerra, e agora Anakatanas. Amanhã terão outro nome. Mas a essência será a mesma: a violência como governo invisível. Até quando? Até quando a cidade vai assistir? Até quando as autoridades vão prometer “consultas às subunidades”? O silêncio é cúmplice. A omissão é assassina.
Esse é o preço de viver num Estado que faz vista grossa ao terror e mantém, por debaixo da mesa, as armas que julga publicamente. O terror aqui não é uma anomalia: é método. Se o governo não age, a própria cidade vai agir. E o dia em que isso acontecer, senhores, haverá mais sangue do que agora. E ninguém poderá dizer que não foi avisado. Porque quando o medo se torna rotina, a liberdade morre sem testemunhas. E toda violência urbana consentida é apenas a face civil de um regime bárbaro vestido de terno.
Pemba, 2025. A cidade onde os 15 são apenas a cortina, e atrás dela, quem comanda é quem deveria proteger.