No centro desta produção multifacetada, a obra Nos Meandros do Feitiço, da autoria de Geraldo Macalane, inscreve-se como um contributo singular à literatura de matriz africana, evocando, com rara densidade poética e narrativa, os elementos fundadores da cosmovisão bantu, o imaginário do feitiço e os conflitos éticos, políticos e espirituais que moldam a vida das comunidades.
Situada numa vila ficcional de Laine, mas profundamente enraizada em geografias e práticas socioculturais reconhecíveis do norte de Moçambique, a narrativa transporta-nos para um universo onde o real e o fantástico coexistem de forma orgânica. Macalane revela-se exímio na arte de conduzir o leitor pelos labirintos do invisível, onde o feitiço — entendido aqui não apenas como prática esotérica, mas como categoria social e simbólica — opera como força desestabilizadora e, simultaneamente, como catalisador de processos de regeneração.
Ao longo da obra, emergem personagens emblemáticas como o régulo Njiwa, símbolo da autoridade tradicional, Abiti Welo, figura matriarcal resiliente, e Kaundula, uma entidade mítica que rompe as fronteiras do tempo e do espaço para confrontar o mal enraizado nas práticas de feitiçaria e no silêncio cúmplice da comunidade. O episódio central da narrativa — o desaparecimento de Mwema — ultrapassa o registo do drama pessoal para se afirmar como metáfora de uma comunidade em busca de purificação, justiça e reencontro com os seus fundamentos éticos.
Nos Meandros do Feitiço adopta, assim, uma estrutura narrativa marcada por uma circularidade e por uma forte presença do narrador tradicional — quase um griot — que, ao convocar o leitor para “contar essa história”, estabelece uma ponte entre a literatura oral e a escrita, entre o passado mítico e o presente concreto. Neste sentido, a obra dialoga com uma tradição literária moçambicana já consolidada por autores como Carlos Paradona Rufino Roque, Ungulani Ba Ka Khosa, Paulina Chiziane, Mia Couto, entre outros, ao mesmo tempo que inaugura uma voz própria, marcada por uma linguagem acessível, visceral e ritmada, com forte presença de expressões locais e evocação de cenários familiares ao universo cultural da região do Lago-Niassa.
No plano temático, o texto levanta questões centrais como o papel da superstição na perpetuação da violência estrutural, a impotência das lideranças tradicionais diante das forças do oculto, o lugar da mulher como sujeito sacrificial e como guardiã da memória e da moralidade e a fragilidade das comunidades face às perturbações do tecido social e espiritual. Tais questões são tratadas com profundidade e maturidade narrativa, revelando não apenas um conhecimento apurado da realidade moçambicana, mas também uma consciência crítica do papel transformador da literatura.
Além disso, a obra é rica em simbologias: o rio Lunho surge como eixo narrativo e simbólico — espaço de passagem, de vida e de morte; o bambu giratório que anuncia a chegada de Kaundula evoca os sinais proféticos e os limites da razão; as noites de abstinência sexual imposta revelam o poder dos interditos e a tensão entre o desejo individual e o bem colectivo. Esta dimensão simbólica insere a obra no campo do realismo mágico africano, onde os elementos sobrenaturais não rompem a lógica interna do mundo narrado, mas antes a ampliam.
Importa destacar, ainda, a escrita de Macalane como um gesto de resistência cultural. Ao recuperar, recriar e valorizar práticas linguísticas, expressões culturais e formas de convivência comunitária moçambicanas, o autor contribui para a valorização da literatura nacional enquanto espaço de afirmação identitária, de crítica social e de invenção poética. Ao mesmo tempo, o texto convoca o leitor para uma reflexão sobre a actualidade dos dilemas abordados — a justiça social, os direitos das mulheres, a impunidade, os silêncios cúmplices e o medo —, conferindo à narrativa um carácter universal.
A leitura de Nos Meandros do Feitiço não se presta a um consumo passivo. Ao contrário, exige do leitor envolvimento emocional, escuta sensível e disponibilidade para percorrer territórios onde o lógico e o ilógico se cruzam. Mais do que uma obra de ficção, este texto constitui um ritual literário: convida à escuta dos mortos, à confissão dos vivos e à reconstrução de sentidos em tempos de crise.
Por tudo isso, esta obra deve ser acolhida como um importante marco da nova produção literária moçambicana, que, sem se fechar aos legados do passado, projecta-se para o futuro com audácia estética, consciência crítica e profundidade simbólica. Ao autor, Geraldo Luís Macalane, cabe o mérito de ter concebido uma narrativa que, simultaneamente, encanta, interroga e transforma.
Oxalá esta obra encontre muitos leitores — sobretudo moçambicanos — que nela reconheçam os ecos das suas inquietações, os contornos das suas memórias e a força do seu imaginário colectivo. Afinal, há histórias que não mais se podem calar. E esta, sem dúvida, é uma delas.
Gerson Pagarache
Linguista e Revisor