Certa vez, contava o velho Ndambir, que numa aldeia ao norte do rio Save, havia um leão que caçava para todos. Ele não permitia que nenhum animal passasse fome, e dividia a carne conforme a força e a coragem de cada um. Mas, um dia, os chacais e hienas conspiraram, disseram que o leão era velho e já não caçava mais como antes. Espalharam mentiras, mudaram o nome da savana para “Terra dos Chacais Livres” e expulsaram o leão.
Por: John Kanumbo
Passados anos, a terra ficou seca, sem caça, sem lei. Os chacais começaram a morder-se uns aos outros, mas quando lhes perguntavam: “Quem manda aqui?”, eles respondiam: “Somos todos livres”. Na verdade, havia um velho chacal, escondido atrás da moita, a quem todos obedeciam.
Assim está Moçambique. Aliás, conta-se que quando os portugueses partiram, deixaram as chaves da cidade nas mãos de alguns moçambicanos, mas esqueceram de dizer onde ficava a porta. Papa Samora, veja! 50 anos depois, Papa Samora, olha o que fizeram. Trocaram o nome do Estádio da Machava para “Estádio da Independência Nacional”. Trocaram porquê? Porque viram que o nome carregava história. História que incomoda. História que lembra quem realmente lutou e quem se aproveitou. Mas… qual independência? Aquela que proclamaste no dia 25 de Junho de 1975 ou a que pretendem agora simular para legitimar os seus negócios de família? Se calhar amanhã irão até mudar a data para 26 de Outubro, para agradar aos seus patronos.
Sim e se for preciso, Papa, não tardaram mudam até a data da independência para ajustar à sua narrativa. E vão dizer que isso só custou 18 bilhões de dólares — como sempre mentem. Mas nós sabemos que o mais caro não é o dinheiro: é a vergonha. De que serviu a independência se 50 anos depois o povo continua a pedir autorização para ser livre? Se as mesmas famílias mandam e desmandam? Se o país é refém de uns quantos, que trocam nomes de praças, mas não trocam as políticas que matam o povo à míngua?
Lembro-me bem, Papa, quando nesse dia 25 de Junho a aldeia toda vibrava, os Mapikos bailavam, os velhos contavam histórias de guerra, e nós, crianças, comíamos a carne que os mais velhos caçavam só para essa ocasião. Era Uhuru, em suaíli que independência, era liberdade, era verdade. Agora, nem os batuques batem mais. Trocaram até a tua estátua, Papa. Não tarda, mudam-te o nome na história.
Quando o sistema falha, Papa, os poderosos transformam o diálogo numa arma, e a política num palco de chantagem. Como se diz “se não aceita ser conselheiro de Estado, vai preso”, dizem eles. É a velha tática de Maquiavel: eliminar o adversário ou domesticá-lo. O grande pensador Frantz Fanon alertava: “Cada geração deve descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la”. A nossa está a ser traída. Traída por quem deveria carregá-la com honra.
Talvez seja como diria Bertolt Brecht: O analfabeto político é tão ignorante que não sabe que do seu desinteresse nasce a prostituta, o menor abandonado e o pior de todos os bandidos: o político vigarista, malandro e corrupto. É por isso que gastam milhões em farsas e na mudança de nomes de estádios, enquanto os hospitais não têm analgésicos.
Daqui a dias, Papa, ouviremos dizer que a mudança de nome do Estádio custou 18 bilhões de dólares — ou outra cifra qualquer equivalente aos seus luxos. E ninguém saberá de onde saíram, para onde foram ou quem beneficiou. É sempre assim. A filosofia do disfarce institucional. Um diálogo político sem protagonistas livres é como um julgamento onde o réu já está condenado antes do tribunal sentar. Se puder, Papa, saia do lugar onde repousa e venha ver isso. Até os cobradores de chapa estão a ensaiar a nova paragem: “Paragem Estádio da Independência Nacional”. Uma piada. Mas perigosa.
O Estádio da Machava, esse palco histórico de 25 de Junho de 1975, que viu Samora Machel proclamar a tal independência nacional, agora foi rebaptizado — Estádio da Independência Nacional. Como quem troca a casca de um fruto podre e espera que o sabor mude. É como trocar o rótulo da garrafa de veneno e esperar que o conteúdo vire vinho.
Senhores, esta não é apenas uma mudança de nome, é um sinal. Em sociedades em colapso moral, tudo vira fachada. E não basta mudarem o nome do estádio, vão ainda trocar as datas, reescrever as proclamações, pintar as paredes da vergonha. Se possível, mudarão até a cor do céu. Como disse Bertolt Brecht: em tempos de mentira universal, dizer a verdade é um acto revolucionário.
Se é esta a independência, Papa Samora, então não se fez independência nenhuma. Só trocaram o capataz do patrão. Como dizia Thomas Sankara, “um Estado que troca sua história e seus símbolos não tarda a trocar seu povo”. É o que estão a fazer: trocam nome de estádios, apagam estátuas, desfiguram datas — e querem trocar o povo por súbditos domesticados. 50 anos depois, ainda há moçambicanos sem identidade. Ainda há mortos enterrados sem nome. Ainda há líderes populares a serem enforcados de forma invisível pelos mesmos métodos de 1977. Fingem diálogo como fingiam tribunal popular. Fingem reconciliação como fingiam eleições.
A história está a repetir-se como tragédia e farsa. Primeiro, mataram Urias Simango, eliminaram Joana Simião, amordaçaram os inconformados. Agora querem fazer o mesmo com Venâncio Mondlane, mas usando o refinamento da chantagem política moderna: ou aceita o lugar de conselheiro e se cala, ou a prisão o espera e todos sabemos como terminou. Esses encontros entre o engenheiro Venâncio Mondlane e Chapo são puro teatro, Papa. É como dizia o angolano Agostinho Neto: “Na boca do opressor, a paz é um disfarce para o prolongamento da opressão”.
Ana Maria Albino perguntou bem: qual é a necessidade de se gastar 90 milhões de meticais para um “diálogo político”, quando o principal actor está a ser perseguido politicamente? Isso é sinalizar à esquerda e virar à direita, como dizia o filósofo italiano António Gramsci sobre o teatro político de elites decadentes. Gastam 90 milhões de meticais para organizar um suposto “diálogo político”, quando o verdadeiro diálogo seria devolver a dignidade ao povo e a coragem à justiça. Diálogo para quem? Para eles mesmos? Para simular democracia na frente da comunidade internacional enquanto fabricam processos e ciladas para quem ousa discordar?
Como disse Albert Camus, “quando o sistema é injusto, a desobediência é obrigação”. Estamos obrigados, Papa. 50 anos depois, as promessas de pão, saúde, escola e dignidade são agora hotéis de luxo, clínicas privadas e filhos de dirigentes a estudar em Londres. O filho do camponês ainda nasce no mato e morre sem ver Maputo.
Nietzsche alertava que “o estado é o mais frio de todos os monstros frios. Ele mente com frieza, e esta mentira rasteja de sua boca: ‘eu, o estado, sou o povo’”. Mas o povo sabe. Como no provérbio makonde: “quem planta mandioca torta, não pode reclamar da raiz que colhe”.
Não se dialoga enquanto se persegue. Não se dialoga com armas apontadas. Não se dialoga quando o verdadeiro propósito é silenciar, desmobilizar e perpetuar o monopólio político de sempre. O povo precisa saber que há um jogo sujo em andamento. E mais grave: jogam com o dinheiro público e com o futuro coletivo de um povo que já foi exaurido por promessas quebradas e dívidas ocultas.
O país virou uma anedota trágica. Um cobrador de chapa em Maputo já ensaia: “Paragem Estádio da Independência Nacional!” E eu me pergunto: será que Samora, lá onde estiver, não se revolveria ao ver que nem o nome que deu ficou? Que até a sua estátua ameaça ser retirada? Porque não bastou a estátua de Mondlane.
Já dizia Gramsci: o velho está morrendo e o novo não consegue nascer: neste interregno surgem os monstros. Estamos nesse tempo. Entre a promessa da independência e a realidade da dependência de dívidas e capatazes coloniais de gravata. O que sobra é escrever, resistir e denunciar. Como disse José Craveirinha, “só me deixam o grito”. Pois que gritemos. Por nós, pelos nossos filhos e pela memória dos que ousaram sonhar.
Chegou a hora de chamar as coisas pelo nome. Moçambique não está em diálogo político. Está em plena manobra de sobrevivência partidária, disfarçada de boa vontade. E os 90 milhões de meticais? Servirão apenas para financiar o teatro. Porque quando o poder sente que falha, usa a perseguição como arma.
A independência virou dependência ainda. Como disse Milan Kundera: “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. E nós não vamos esquecer. Por isso, Papa Samora, te escrevo. Para te avisar que os xiconhocas voltaram, e agora andam a trocar nomes de praças, estátuas, datas e heróis. Eles vão trocando tudo, menos a sua sede de poder.
A luta continua? Já não sei. Papa, levanta-te e vê. Se puderes. O país não saiu da colónia. Só mudou de dono.