UEM vs. Estudantes: 1×0

A Universidade Eduardo Mondlane (UEM), ao decidir excluir estudantes que efectuaram o pagamento da inscrição semestral fora do prazo estabelecido, adopta uma postura que, embora formalmente amparada pelos regulamentos internos, revela-se dissociada da realidade socioeconómica enfrentada pela maioria dos seus estudantes.

Em um país onde a instabilidade económica e as dificuldades financeiras permeiam o quotidiano das famílias, a rigidez nos prazos administrativos transforma-se em barreira para o acesso à educação superior, comprometendo não apenas o presente académico, mas também o futuro desses jovens.

Tal decisão, ainda que legalmente fundamentada, configura um acto contra sensu — um descompasso entre a letra da norma e a sensibilidade social necessária para lidar com as condições concretas da população estudantil. Esta incongruência aponta para a urgência de uma análise crítica e humanizada, que leve em conta não só o rigor institucional, mas também a justiça social e os direitos fundamentais dos estudantes.

Por: Zacarias Nguenha

O problema levanta uma questão inquietante: pode uma universidade pública, que goza de autonomia administrativa, mas que deve respeito aos princípios constitucionais e ao interesse público, excluir estudantes que demonstraram inequívoco interesse em frequentar as aulas apenas por terem pago fora do prazo? A resposta não pode ser dada apenas com base na letra fria de um regulamento. O que está em jogo é mais do que um simples procedimento: é o direito à educação e a finalidade social do ensino superior público.

A situação não é hipotética nem isolada. Em Moçambique, como em muitos países africanos, o acesso ao ensino superior ainda é um privilégio para poucos. Muitos estudantes enfrentam dificuldades financeiras, dependem de bolsas, subsídios ou ajudas familiares informais que nem sempre chegam a tempo. A realidade é marcada por atrasos salariais, limitações tecnológicas e falhas de comunicação institucional. Mesmo assim, esses estudantes esforçaram-se, pagaram a inscrição (ainda que fora do prazo) e demonstraram vontade de continuar os estudos. Serão eles agora punidos com a perda total do semestre?

Não se trata aqui de um apelo emocional vazio. O ordenamento jurídico moçambicano, especialmente a Constituição da República e a Lei do Procedimento Administrativo, impõe limites à actuação da Administração Pública, mesmo quando ela actua com base em regulamentos internos. A decisão da UEM precisa ser examinada sob a luz dos princípios da legalidade, razoabilidade, proporcionalidade e interesse público, sob pena de transformar uma regra administrativa em instrumento de exclusão social.

Fundamento constitucional e administrativo: o direito à educação e os limites da actuação da universidade

O ponto de partida jurídico para a análise da decisão da Universidade Eduardo Mondlane (UEM) deve ser a Constituição da República de Moçambique (CRM). Em seu artigo 88.º, a Constituição estabelece, de forma clara e inequívoca:

Artigo 88.º – Educação

  1. Na Republica de Moçambique a educação constitui um direito e dever de cada cidadão.
  2. O Estado promove a extensão da educação a formação profissional continua e igualdade de acesso de todos os cidadãos ao gozo deste direito.

Este artigo impõe um dever objectivo ao Estado – e, por consequência, às instituições públicas de ensino superior – de promover o acesso universal, igualitário e progressivo à educação. A decisão de impedir um estudante de frequentar aulas e realizar exames por ter pago a inscrição fora do prazo pode representar uma violação concreta deste preceito constitucional, especialmente se não tiver sido proporcionada ao estudante uma alternativa razoável de regularização ou defesa. Alias, o acesso a ensino superior deve garantir a igualdade e equidade de oportunidades e democratização do ensino (art.114, numero 1, CRM).

Além da Constituição, a Lei n.º 14/2011, de 10 de Agosto – Lei do Procedimento Administrativo (LPA), que rege todos os actos e decisões da Administração Pública, impõe limites importantes à forma como as instituições tomam e aplicam decisões que afectam direitos dos cidadãos.

Destacam-se os seguintes princípios:

  1. Princípio da Legalidade – artigo 4.º, n.º 1 da LPA

A Administração Pública está subordinada à Constituição, à lei e ao direito, devendo observar os princípios da legalidade, da justiça, da imparcialidade, da proporcionalidade, da boa-fé e da prossecução do interesse público.

Apesar de o regulamento da UEM prever prazos fixos para o pagamento da inscrição, a aplicação literal e inflexível dessa regra, sem considerar as circunstâncias concretas e a realidade do estudante, pode contrariar esses princípios. A legalidade não se resume ao cumprimento formal do regulamento, mas exige uma aplicação justa, equilibrada e compatível com os direitos fundamentais.

  1. Princípio da proporcionalidade – artigo 6.º da LPA

Os actos administrativos devem ser adequados, necessários e proporcionais à realização do interesse público a que se destinam.

A decisão de negar o semestre a estudantes que pagaram a inscrição após o prazo, sem que estes tenham agido com má-fé, é desproporcional. O estudante sofre uma sanção extrema – perda de um semestre inteiro – por uma infracção administrativa menor, que poderia ser resolvida com uma multa, advertência ou regularização especial.

  1. Princípio da boa-fé – artigo 8.º da LPA

A Administração Pública deve actuar e decidir de boa-fé e com lealdade para com os particulares.

Se o estudante pagou a taxa e, por isso, confiou que estaria matriculado, cria-se uma expectativa legítima de vínculo com a instituição. A exclusão, depois de ter sido recebido o valor, rompe esse princípio da confiança e gera um comportamento contraditório da parte da Administração (recebe-se o dinheiro, mas nega-se o serviço).

  1. Direito ao contraditório

“Antes da tomada de uma decisão desfavorável a um particular, deve ser-lhe concedida a possibilidade de se pronunciar sobre os factos e os fundamentos que a possam justificar.”

Os estudantes foram ouvidos antes da decisão da Reitoria? Foi-lhes dada oportunidade formal de apresentar uma justificação ou pedido de regularização extraordinária? Se não houve esse momento, a decisão é ilegal por violação do direito ao contraditório e da audição prévia obrigatória.

Portanto, a actuação da UEM, ao negar o semestre a estudantes que efectivamente pagaram, pode ser objecto de impugnação legal ou, no mínimo, de uma recomendação formal de revisão do acto administrativo, pois não respeita princípios constitucionais nem administrativos fundamentais.

Regulamento da UEM: quando o próprio sistema permite alternativas

A Universidade Eduardo Mondlane rege-se por um conjunto de regulamentos internos que disciplinam o funcionamento académico e administrativo. Dentre eles, o Regulamento Pedagógico Geral (RPG) é o mais relevante para a situação em análise. Embora não esteja integralmente disponível em meio digital, partes importantes deste regulamento são conhecidas em práticas e documentos divulgados pelos próprios serviços da UEM, sobretudo em manuais de procedimentos académicos.

De forma geral, o RPG estabelece regras quanto à inscrição semestral, frequência às aulas, avaliação e exames. É certo que o regulamento determina prazos formais para a inscrição e que o não cumprimento destes prazos pode implicar a perda do semestre. Contudo, o próprio regulamento e a prática institucional da UEM reconhecem situações excepcionais e medidas de regularização, como veremos a seguir.

  1. A UEM é obrigada a aplicar o regulamento com razoabilidade

Ainda que o RPG não crie um “direito automático” à aceitação de pagamentos fora do prazo, ele não proíbe expressamente a regularização de situações anómalas, nem impõe a exclusão automática do estudante. A prática mostra que a Administração universitária goza de margem discricionária para decidir caso a caso, inclusive quanto à aceitação de motivos socioeconómicos, familiares ou técnicos (como falhas no sistema informático ou problemas de acesso ao Portal Académico).

Portanto, é possível e legalmente sustentável que a Reitoria, sob requerimento formal, autorize excepções, desde que estas não atentem contra o bom funcionamento da instituição. E mais: a regularização não compromete o calendário académico nem prejudica os estudantes que cumpriram o prazo, quando feita até ao início da época de exames.

  1. A universidade não pode receber o valor e recusar o serviço

Há, ainda, uma questão objectiva de natureza contratual e de justiça material: se a UEM aceitou o pagamento da inscrição, sem devolver nem informar no momento que o semestre já estaria perdido, está criada a obrigação mínima de prestação de serviço correspondente ou, alternativamente, de permitir ao estudante exercer um direito de reclamação e contestação formal, o que nem sempre acontece.

A postura de “aceitar o valor, mas negar o semestre” pode configurar enriquecimento sem causa por parte da Administração, situação vedada pelo Direito Civil (artigo 473 e ss) e Administrativo, sobretudo quando não há um canal claro de devolução ou recurso.

  1. A jurisprudência e a prática de outras universidades públicas moçambicanas apontam para soluções inclusivas

Universidades públicas como a Universidade Pedagógica de Maputo (UP-M), a Universidade Licungo, a universidade Púnguè, em situações similares, tem atendimentos especiais de inscrição tardia com base em justificações humanitárias ou financeiras. Assim, não há um modelo único e fechado; e a UEM, como universidade pública, deve agir em conformidade com as boas práticas do sistema nacional de ensino superior.

Portanto, está claro que a exclusão automática e absoluta dos estudantes que pagaram fora do prazo não é uma exigência do regulamento, mas uma interpretação rígida e evitável. A UEM tem meios legítimos e regulamentais para agir de forma mais equilibrada, preservando a autoridade institucional sem sacrificar o direito dos estudantes à educação.

O Direito Administrativo, ao contrário de algumas secretarias académicas, exige mais do que carimbos e prazos: exige proporcionalidade, boa-fé e razoabilidade — três primas que raramente são convidadas para o chá dos regulamentos.

Assim sendo, recomenda-se à nobre casa que:

Permita aos estudantes frequentarem o semestre, visto que não se pode engolir o dinheiro com uma mão e empurrar o aluno porta afora com a outra.

Em suma: se é para ser exemplo nacional, que seja de inclusão e não de exclusão — porque punir quem pagou é como multar quem chegou atrasado à festa mas trouxe o BOLO.

 

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