Imediatamente a seguir ao primeiro contacto das botas ruandesas com as terras de Cabo Delgado, a convite do antigo Presidente da República, Filipe Nyusi, para ajudar a combater o terrorismo, uma pergunta tornou-se constante entre os moçambicanos: o que ganha Kigali despachando as suas forças para Moçambique? Do lado dos dois estadistas, Filipe Nyusi e Paul Kagame, a resposta foi: nada.
O Presidente do Ruanda chegou a dizer em algumas entrevistas que a presença das suas forças é financiada pelos impostos dos ruandeses. Mas essa resposta nunca convenceu, tendo presente a máxima de que não existem “almoços grátis”. Do lado da sociedade sempre houve a suspeita de que os regimes de Nyusi e Kagame escondiam algo dos moçambicanos.
O tempo passou e o que era suspeita se confirmou há dias, através de uma publicação da África Intelligence, que diz que Moçambique está a ter dificuldades para pagar as tropas ruandesas. A informação sobre a falta de pagamento dos ruandeses reacende um importante debate sobre a necessidade de transparência na relação entre Kigali e Maputo. Neste contexto, o Centro para Democracia e Direitos Humanos (CDD) defende que é de extrema urgência a apresentação do acordo detalhado entre o Ruanda e Moçambique.
Uma relação nebulosa
Moçambique conta desde Setembro de 2021 com a ajuda das tropas ruandesas no combate ao terrorismo que afecta a província de Cabo Delgado desde Outubro de 2017, tendo já feito vítimas em Niassa e Nampula.
No ano da chegada das tropas ruandesas em Moçambique, Mocímboa da Praia estava nas mãos dos terroristas; Palma tinha sido alvo do maior e mais significativo ataque que levou a empresa Petroquímica TotalEnergies a declarar Força Maior. Este ano completam- se quatro anos da presença ruandesa em Moçambique. No entanto, não há clareza sobre os ganhos da intervenção militar de Kigali.
Numa entrevista, no ano passado, Paul Kagame disse que a intervenção ruandesa era financiada com recurso aos impostos dos ruandeses. Filipe Nyusi também negou que Moçambique estivesse a pagar pela ajuda militar ruandesa. Com Nyusi fora do poder, as suspeitas de que Moçambique pode estar a pagar uma factura cara vão-se provando.
A publicação Africa Intelligence diz que Moçambique pode estar a dever entre 2 a 4 milhões de dólares por mês. As facturas a Kigali não são pagas desde Agosto de 2024 com a exoneração de Max Tonela.
A informação de que Moçambique está a pagar Kigali é nova. O que se sabe é que há fundos da União Europeia canalizados para as contas de Kigali para financiar as suas operações em Moçambique.
Necessidade de transparência: As relações entre o Ruanda e Kigali ganharam outro dinamismo no consulado de Filipe Nyusi
Em 2019 foi aberta a embaixada ruandesa em Maputo, num contexto de perseguição que se manifestou através de raptos e assassinatos de opositores políticos de Paul Kagame.
A implantação da embaixada foi vista pelos refugiados ruandeses como sendo um dos factores que pioraram a sua segurança em Moçambique, sobretudo depois da indicação de Claude Nikobisanzwe como Alto Comissário, o mesmo diplomata que em 2014 foi expulso da África do Sul por suspeitas de envolvimento no assassinato de Patrick Karegeya, antigo chefe dos serviços secretos do Ruanda, encontrado morto num hotel de Joanesburgo. Com a instalação da embaixada, apontada como centro de planificação das incursões do esquadrão da morte ruandês, foram mortos ou raptados muitos refugiados.
Informação de fontes seguras indica que entre o contingente ruandês despachado para Moçambique, estão oficiais dos serviços secretos, parte dos quais opera em Maputo. Do total dos homens de Kigali pouco mais de 80 por cento está em Cabo Delgado, o resto está espalhado pelo país para fazer o trabalho sujo de Kagame. Por exemplo, em 2019, foi assassinado Louis Baziga. Louis Baziga foi assassinado com uma arma na Av. da OUA, conhecida como “Estrada Velha”, próximo da loja “Midas”, na cidade da Matola.
Em 13 de Setembro de 2021, Revocant Karemangingo, vice-presidente da Associação dos Refugiados Ruandeses em Moçambique (ARRM), foi assassinado a tiro perto da sua residência, no Bairro Liberdade, cidade da Matola. Revocant Karemangingo foi a primeira vítima do esquadrão da morte ruandês depois da entrada da tropa ruandesa em Moçambique.
Ainda no ano de 2021, concretamente no mês de Maio, a comunidade ruandesa reportou o desaparecimento forçado do jornalista Ntamuhanga Cassien, que se encontrava exilado na Ilha de Inhaca, cidade de Maputo. Cassien, de 37 anos, foi raptado por um grupo de oito pessoas que se identificaram como sendo agentes da PRM.
Mais tarde circularam informações segundo as quais Ntamuhanga Cassien tinha sido extraditado para o Ruanda para cumprir uma pena de 25 anos a que fora condenado em 2017 por crimes de conspiração contra o Governo e cumplicidade em acto terrorista, num processo com motivações políticas. Não obstante a intensificação das acções do esquadrão da morte ruandês no mandato de Nyusi, as primeiras vítimas de Kigali foram feitas em 2002, com o assassinato de Théogène Turatsinz.
Em 2021, Kigali envia a sua tropa para Cabo Delgado, principalmente para o coração e cintura do projecto de gás de Afungi, sem clareza sobre as contrapartidas, o que levantou suspeitas de que Kigali viesse a ter dividendos no gás a ser extraído de Afungi. Neste mês foram enviadas mais tropas de Kigali para Cabo Delgado. Em 3 de Junho de 2022, em Kigali, capital do Ruanda, são assinados dois acordos pelo Ministro de Estado para os Assuntos Constitucionais e Legais do Ruanda, Nyirahabamina Soline, e pela Ministra da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos de Moçambique, Helena Kida.
Trata-se do Acordo de Extradição e do Acordo sobre a Assistência Mútua Legal em Matéria Criminal, cuja aprovação pelo Conselho de Ministros foi feita em Fevereiro de 2023 e a ratificação pela Assembleia da República em Março de 2024, o que legaliza a perseguição dos refugiados ruandeses em Moçambique.
Uma relação que seguiu crescendo mesmo em fim de mandato
A relação nebulosa entre Filipe Nyusi e Paul Kagame seguiu firme, mesmo em fim de mandato. Na visita de Nyusi a Kigali, capital do Ruanda, em Maio de 2024, a relação que com o tempo ia pendendo mais para o lado de interesses pessoais do que propriamente de Estado, pelo menos do lado moçambicano, deu mais um passo. Kigali despachou mais militares, em número não especificado, para se juntarem aos 2500 que se encontravam em Cabo Delgado desde 2021. A informação tinha sido partilhada por Nyusi na hora do balanço da visita de dois dias (16 e 17 de Maio) que efectuou a Kigali.
A visita de Nyusi a Kigali aconteceu numa altura em que a Missão Militar da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral em Moçambique (SAMIM) estava a sair de Cabo Delgado, alegadamente por falta de dinheiro para financiar as operações da missão, mas também com a justificação de que a situação de segurança estava controlada.
Na altura, duas questões ficaram por responder. A primeira é a de saber o que vinham, então, fazer as tropas ruandesas, se a situação de segurança estava controlada. A segunda é: qual é a fonte de financiamento dos militares despachados para Cabo Delgado, tendo presente que o Governo moçambicano não tem dinheiro?
Há, para nós, uma resposta que parece óbvia: Kigali foi sempre a preferência de quem governava Moçambique para as operações em Cabo Delgado. No balanço da visita que fez a Kigali, Nyusi deixou claro que o novo contingente iria garantir segurança nas regiões que eram de actuação da SAMIM.
A informação sobre a falta de pagamento sobre a necessidade de transparência na relação entre Kigali e Maputo. Neste contexto, o Centro para Democracia e Direitos Humanos (CDD) defende que é de extrema urgência a apresentação do acordo detalhado entre Ruanda e Moçambique. A natureza nebulosa da intervenção ruandesa pode levar os moçambicanos a pagarem uma factura muito cara pela ajuda que vem recebendo desde 2021. O Governo de Daniel Chapo tem a importante missão de evitar que a “ajuda” do Ruanda se torne num problema para esta e as próximas gerações. (TEXTO: CDD)