Hoje, os olhos se voltam para a Rússia, onde uma aeronave presidencial escolta com caças um chefe de Estado africano: Ibrahim Traoré, o jovem presidente de Burkina Faso. Que gesto é este, senão um símbolo claro de uma revolução diplomática silenciosa? Que mapa geopolítico se desenha entre os voos militares e os apertos de mão nos memoriais soviéticos? Um acontecimento, longe das lentes vaticanas e mais próximo dos ares euroasiáticos, marcava o que talvez venha a ser lembrado como um novo marco para o continente africano.
Por John Kanumbo
O presidente de Burkina Faso, Ibrahim Traoré, não voou em avião comercial. Nem mesmo em uma aeronave presidencial de seu país. Foi Vladimir Putin, o senhor das chaves nucleares do Kremlin, quem enviou a sua própria máquina aérea — blindada, ultrassecreta, acompanhada por quatro caças Sukhoi 30 de escolta — para transportar o jovem líder africano. Pela primeira vez na história contemporânea, um presidente russo enviava sua aeronave presidencial para buscar um chefe de Estado estrangeiro. E este chefe de Estado era africano.
O continente africano sempre foi olhado como palco, nunca como ator. Mas o gesto de Vladimir Putin não pode ser reduzido a mera formalidade ou cortesia estratégica. Há aqui uma mensagem cifrada, uma aliança simbólica, um novo pacto não dito entre a potência euroasiática e a juventude rebelde africana que se recusa a ajoelhar-se às velhas potências coloniais.
Que mundo é este onde, de repente, a África começa a sentar-se à mesa das potências não como espectadora, mas como peça no jogo? Que tipo de sussurro geopolítico ecoa entre os corredores do Kremlin e as ruas poeirentas de Ouagadougou?
Pergunto-me: estará o velho urso russo interessado apenas na “libertação da África de todo o mal”? Ou seria este o renascimento de uma nova Guerra Fria em solo africano, travada não mais à bala, mas pela diplomacia simbólica e pelos gestos de poder?
Traoré, escoltado por um avião presidencial russo e quatro caças de elite, foi tratado como um aliado de igual estatuto — ou mais —, testemunha o anúncio de um reposicionamento. A Rússia nunca o fez por nenhum outro presidente, nem europeu, nem asiático. Por quê agora? Por quê com um africano? Talvez porque Putin, nas entrelinhas da guerra fria contemporânea, reconheça na África uma nova frente de resistência à hegemonia do Ocidente. Ou talvez porque veja em Traoré o eco de um outro nome, há muito silenciado no deserto: Muammar Kadafi.
Diz-se que se Putin governasse a Rússia em 2011, Muammar Kadaffi não teria morrido como um cão acuado no deserto líbio. Que, se tivesse havido então um líder disposto a peitar o Ocidente, Kadaffi teria encontrado asilo e protecção. Essa é uma hipótese inquietante. O líder líbio implorou exílio e acolhimento, mas o mundo se calou. A África foi deixada órfã mais uma vez. Hoje, talvez, o continente não aceite mais ser órfão. Talvez Traoré seja o filho rebelde que volta para vingar os pais humilhados.
Quem governava a Rússia naquela época era Dmitry Medvedev, mais simpático à conciliação que à confrontação. Hoje, o cenário é outro. A África mudou, e a Rússia também.
A aeronave blindada, com tecnologia anti-míssil, criptografias e caças à espreita, é mais do que segurança: é declaração. Declarar ao mundo que um novo marco está sendo desenhado no mapa-múndi. Não mais a África submissa, mas a África estratégica. Não mais a África dos leões explorados, mas dos leões despertos.
O que esse voo representa? Muito mais do que uma cortesia diplomática. Menos ainda uma anedota estratégica. É o esboço de um novo mapa: onde África não é mais ponto de passagem, mas de partida. Onde o negro não é mais refugiado nos porões da modernidade, mas figura convocada para a mesa das decisões globais.
Esse gesto de Putin é, ao mesmo tempo, uma oferenda e um enigma. Uma oferenda ao continente sempre ferido, mas que insiste em caminhar. Um enigma que nos obriga a perguntar: que África é essa que a Rússia escolta? Que Rússia é essa que se oferece à África?
A pergunta, portanto, não é se Putin ama a África. A pergunta correcta seria: qual África interessa à Rússia? E mais: qual Rússia interessa à África? E mais: qual Rússia interessa à África? Porque há Áfricas múltiplas, e a que se vende aos senhores estrangeiros não é a mesma que se ergue das cinzas e caminha com o orgulho de quem sabe o valor do seu próprio suor.
As nações africanas, marcadas por décadas de exploração, golpes, ingerências e miséria administrada, devem olhar para este episódio com os olhos da crítica, da prudência e da filosofia. Nem todo presente é isento de intenções, e nem toda proteção é gratuita. A História nos ensina que as potências não possuem amigos, possuem interesses. E quem não entende isso cedo ou tarde acaba sendo peça descartável no tabuleiro das relações internacionais.
Ainda assim, não se pode negar o simbolismo do gesto. Um jovem capitão africano, descendente dos que tombaram anônimos nas guerras de libertação, escoltado pelos caças de uma superpotência, sobrevoando as rotas que ontem eram negadas aos negros. Isso tem peso. Isso tem cheiro de ruptura. Isso anuncia, talvez, o prenúncio de um protagonismo africano no palco global.
Se há amor, como muitos africanos dizem, no gesto de Putin, é um amor geopolítico. Calculado, frio talvez, mas real. Um amor que protege, que acolhe, que não teme desafiar o consenso imperialista. E por isso, paradoxalmente, é mais genuíno do que a hipocrisia humanitária das velhas potências. A Rússia está a dizer: “África, tu importas.” A aeronave russa é mais do que transporte. É declaração de guerra diplomática. É o Kremlin dizendo à África: “eu te vejo, eu te reconheço, eu te quero comigo”. Mas quem é esse “eu”? E quem é esse “contigo”? O continente africano precisa olhar esse gesto não com olhos apaixonados, mas com olhos lúcidos e críticos. Como nos ensinava Fanon, não há presente inocente no jogo imperial. Toda oferta carrega intenções.
E África, com todos os seus fantasmas, começa a responder: “Sim, existo. E venho para ficar.” Mas é preciso vigiar. Porque quem voa em aeronaves alheias deve saber para onde o piloto deseja levá-lo.
Enquanto isso, o Vaticano votou. A Rússia avança. A África desperta. E o mundo, como sempre, finge não perceber.