TÚMULO ABERTO

Dizem os mais velhos em Ntutupwe: o cabrito que come o milho do vizinho, um dia tropeça na espiga podre.

Aliás, na aula de História, o professor pergunta ao aluno:  — Quem assinou o Acordo de Lusaka? O aluno fica calado, olhando para o professor como se a pergunta fosse uma armadilha.  — Responde, rapaz! Quem assinou o Acordo de Lusaka? — insiste o professor.

O aluno continua em silêncio, suando, olhando para os colegas, esperando que alguém o salve. Irritado, o professor chama o encarregado do aluno. Chega o pai, homem de poucas palavras, mas muito decidido.

Por John Kanumbo

— Senhor, o seu filho se recusa a responder quem assinou o Acordo de Lusaka! O pai olha para o filho e depois para o professor:  — Olha, senhor professor, eu já conheço bem este miúdo. Lá em casa, quando parte um prato, ninguém o viu. Quando falta dinheiro na carteira, ninguém pegou. Agora esse acordo… se ele não quer dizer, desconfio que tenha sido ele mesmo a assinar!  Pois se ele está calado, pode ter certeza: ou foi ele mesmo que assinou, ou viu então quem assinou e não quer falar! A turma explode em gargalhadas, e o professor suspira, percebendo que ali, a história já era outra.

Com isso quero dizer hoje que, quando a política se faz sobre cadáveres, não há futuro — só negócios.  A história é uma prostituta que se deita com quem a compra, mas as cinzas dos mortos gritam mais alto que os aplausos dos vivos.  Se há um nome para o que Moçambique se tornou, esse nome é: país falido moralmente, politicamente desonrado, socialmente apodrecido e economicamente escravizado. Uma terra onde cadáveres são negócios, raptos são rotina e marchas governamentais são festas sobre cinzas humanas.

O país já era. Digo e repito sem medo, sem meias palavras, sem rodeios: Moçambique é hoje um território fantasma, dirigido por gente sem alma e habitado por uma população domesticada, anestesiada e cúmplice pelo silêncio. Cabo Delgado é só a ferida exposta de um corpo nacional apodrecido.

Já escrevemos, falamos, gritamos, mas a indiferença nacional já é uma doença terminal. Ninguém quer saber. As mortes tornaram-se rotina. As valas comuns são paisagem. As aldeias incendiadas são parte do mapa. Os deslocados viraram números para relatórios financiados por dinheiro sujo, dinheiro de sangue, das mesmas mãos que patrocinam o horror.

E não venham com a falácia de insurgência islâmica. Isso é cortina de fumo para esconder o verdadeiro negócio: a venda sistemática de vidas humanas em troca de gás, rubis e madeira. A guerra não é religiosa. Nunca foi. É económica, política, suja e cruel. Basta de hipocrisia. falamos. Digamos. Gritamos. Denunciamos. Porque nesse teatro de mediocridade oficial, ser cúmplice pelo silêncio é crime.

Cabo Delgado é a ferida aberta que ninguém mais tenta esconder, porque o sangue secou e virou mineral. Cada rubi extraído de Montepuez carrega no brilho o sangue de crianças decapitadas e mulheres violadas. A Gemfields e a Mwiriti estão a rasgar a terra. A cada rubi e grafite que sai dali, morrem mais três, quatro, dez moçambicanos. Aquilo é uma mina de sangue. E do lado de cá, as autoridades fingem governar.

E o mais sórdido? Os relatórios da ACNUR, OCHA e outras agências já nem tentam camuflar a catástrofe. Assumem números: “mais de um milhão de deslocados”. Mas evitam dizer a verdade: aquilo é fruto de uma guerra patrocinada, manipulada e protegida para assegurar interesses corporativos e políticos.

A tropa ruandesa — esse exército de aluguel — veio, não para proteger os moçambicanos, mas para garantir que o gás e os rubis saiam intactos para os donos internacionais. Nenhuma operação foi feita para resgatar aldeões. Nenhuma aldeia reconstruída. Mas as zonas de exploração e os acessos rodoviários estão impecáveis. Coincidência? Não. Negócio. As tropas ruandesas são a prova final de que Moçambique perdeu a soberania. As decisões do que acontece em Cabo Delgado não passam mais por Maputo. Passam por Kigali, Joanesburgo, Londres e Doha. E nós, o povo? Continuamos a enterrar os nossos mortos e a fingir que temos país.

Mocimboa da Praia, Balama, Montepuez, Palma, Macomia, Muidumbe, Ancuabe — todas entregues. As autoridades locais são decorativas. Os administradores desses, mais preocupados em fazer almoços políticos e aparecer em fotos ridículas segurando tochas enquanto crianças morrem ao lado. Uma governação de teatro. Um Estado vassalo de interesses estrangeiros e nacionais, onde a tocha da independência virou símbolo de submissão.

A guerra em Cabo Delgado não é insurgência. É mineração armada. É extração a sangue-frio. É o casamento do capital internacional com a prostituição política nacional. Enquanto os corpos apodrecem em Palma, o gás sai intacto de Afungi. Enquanto as mães enterram filhos em Ancuabe, os rubis cintilam nos dedos de europeias bem vestidas. Cada contrato assinado em Maputo é um pacto de sangue. Cada navio que parte de Pemba é um caixão flutuante de esperanças moçambicanas.

E onde está a justiça? Prostituída nos corredores da Procuradoria. Onde está a saúde? Apodrecida entre seringas reutilizadas e hospitais sem luz. Onde está a educação? Reduzida a estatísticas vazias e crianças a aprender debaixo das árvores, enquanto os filhos dos dirigentes estudam em Joanesburgo, Lisboa e Dubai.

Não há governo. Há uma máfia com bandeira. Não há República. Há um condomínio de interesses. Não há povo. Há sobreviventes, resignados e domesticados pelo medo, pela fome e pela desinformação. A televisão nacional já não informa: doutrina. As rádios já não questionam: reverenciam. E os religiosos? Benzem o carrasco. Abençoam a chacina. Baptizam a ganância como se fosse bênção divina.

Aqui estamos mergulhados no crime institucionalizado: raptos em série em Maputo, Beira, Nampula. Empresários, jovens influentes, críticos do regime, todos apanhados em plena luz do dia. E a polícia? Preocupada em conter marchas partidário e escoltar procissões políticas. O Ministério do Interior virou departamento de segurança partidária.

Os relatórios da ACNUR, apesar de tímidos, denunciam a calamidade humanitária. Mas o governo usa esses números para mobilizar fundos internacionais, que nunca chegam às vítimas. Ficam pelo caminho, servindo interesses políticos e enriquecendo bolsos conhecidos. Tornaram-se especialistas em transformar desgraça nacional em plano de negócio.

Até a tal tocha da independência, essa relíquia de uma história adulterada, hoje serve para legitimar a morte. Transportada para celebrar a quê? Centenas de mortos, milhares de deslocados, aldeias reduzidas a cinzas e continuam a fingir que estão em festa. É uma marcha de alegria cínica, uma dança sobre os túmulos, uma celebração dos 100 dias de assassinatos e negligência institucional.

E agora, como se fosse pouco, celebram marchas cínicas pelos “100 dias de governação, (tipo, aliás,  de alegria pelos assassinatos, mentiras, de legitimação de fraudes e reconhecimento de que roubamos e já desistiram e agora vamos cagar nas caras deles)”. O quê que há para celebrar? 100 dias de decapitações? 100 dias de mortes nas matas? 100 dias de novos deslocados? 100 dias de silêncio institucional? É essa a victória?

A marcha é, na verdade, uma coreografia fúnebre, onde o Estado dança em cima dos cadáveres dos seus filhos. Cantam, levantam tochas e aplaudem um presidente que governa em modo automático, ou seja, do presidente ele tem presidente dele, rodeado de bajuladores que não ousam dizer-lhe que o país já acabou.

E enquanto isso, os líderes religiosos, políticos e sociais competem para ver quem elogia mais alto o Presidente, como se as vítimas fossem apenas danos colaterais de um “grande plano estratégico”. Não há plano nenhum. Há crime. Há genocídio. E há silêncio.

As infraestruturas caem. A saúde pública morreu. As escolas são armazéns de crianças famintas. A justiça, prostituída. A democracia, anedota. Os recursos naturais, privatizados. A política externa, vendida. E o povo, entre raptos, assassinatos, fome e miséria, ainda aplaude quem os condena.

O país já era. Moçambique hoje é um corredor de recursos naturais exportados por corporações estrangeiras com a bênção de políticos nacionais vendidos. Cada rubi que sai de Montepuez carrega o sangue de uma criança decapitada. Cada navio de gás que deixa Palma transporta os restos mortais de famílias inteiras que foram sacrificadas para garantir o lucro de multinacionais.

Moçambique não está a morrer. Já morreu. O que resta é uma encenação grotesca de nacionalismo, ensaiada por palhaços fardados de líderes e bajuladores a soldo. O país está entregue — às multinacionais, aos exércitos privados, às empresas de fachada e aos partidos que se alimentam da miséria popular como hienas em cio.

E sim, é preciso nomear: a Gemfields, a Total, a Mwiriti, os banqueiros, os lobistas, os generais aposentados com negócios de segurança, os ministros com empresas familiares — todos são cúmplices. Todos têm sangue nas mãos. O rubi de Montepuez é a lágrima de uma órfã. O gás de Palma é o lamento de um velho que perdeu a terra e a família. O ouro de Manica é a sepultura de um camponês desalojado.

É a Moçambique da comédia trágica. A Moçambique onde se mata, viola, rapta e rouba — mas se faz marcha de tocha. Onde se governa pelas redes sociais, se faz campanha com comida de emergência e se legitima violência com palavras de paz. Esta é a denúncia. Directa. Brava. Sem maquilhagem. Porque já não há espaço para neutralidades. Quem cala, consente. Quem se esconde, pactua. E quem aplaude, participa. Moçambique hoje é um túmulo aberto. E os mortos ainda não disseram a última palavra.

Não há como edulcorar: o país foi vendido. A pátria foi rifada. O Estado já não nos pertence. E quem ousa resistir, desaparece, é raptado, silenciado ou morto. Os raptos em Maputo não são exceção. São protocolo. A repressão é rotina. A impunidade é doutrina de Estado. A morte, essa sim, é a única constante.

E quando tudo isso for contado nos livros de história?
O que dirão de nós? Dirão que fomos uma geração covarde, que assistiu ao genocídio do povo de Cabo Delgado como se fosse um filme estrangeiro e que, nos momentos de crise, soube lotar funerais de artistas e pastores, mas silenciou diante das valas comuns do seu próprio povo. A nossa geração não chora pelos órfãos sem rosto nem pelos corpos mutilados que a televisão se recusa a mostrar. Nós fomos os que discutiram o Big Brother enquanto os tambores da guerra ecoavam nas matas, e as crianças morriam antes de aprender a dizer “mamã”.

O que dirão de nós? Que éramos corajosos nas redes sociais, covardes nas urnas e cúmplices na sala de jantar. Que dizíamos “descansa em paz” para os ícones que morriam de velhice e ignorávamos os jovens que morriam à bala. Que celebrámos os artistas mortos e esquecemos os anónimos assassinados. Chamaram-nos geração perdida, mas fomos geração entregue. Entregue ao vício da aparência, à embriaguez da fé mercantilizada, ao delírio do consumismo e ao medo de enfrentar quem sempre nos explorou.

Que se escreva então a verdade: nós nos calámos.
E enquanto os corpos apodreciam, discutíamos futebol, novelas e a última fofoca. Não tivemos coragem de olhar o túmulo aberto de Cabo Delgado. Preferimos tapá-lo com postagens hipócritas, lágrimas selectivas e orações vazias. Mas haverá um dia… Em que os nomes que hoje calamos serão contados pelos filhos dos nossos filhos. E nesse dia, a vergonha nos visitará — tarde demais.

Por isso, não esperem neutralidade. A neutralidade é luxúria de quem não sente a dor na pele. Esperem denúncia, fúria, verdade crua. Porque Moçambique precisa ser reerguido sobre as cinzas da sua mentira. Não com tochas, mas com coragem. Não com marchas, mas com justiça. Não com bajulação, mas com revolta.

Façam favor de fazer chegar essa mensagem ao meu querido ndjomba, que quando sentava-se no trono, esquecia-se que o trono é de madeira — e madeira apodrece. Hoje, a zona que ele dizia ser sua, o rejeita como se rejeita galinha velha em festa de juventude. E mesmo o dinheiro que carregava nas algibeiras não compra mais respeito no batuque da aldeia.

Termino ainda recordar o meu ndjomba que achou que o poder era eterno. Cercou-se de malaias, fez dos bajuladores seus ministros, e enriqueceu enquanto a zona sangrava. E quando assim o meu ndjomba, largou a cadeira grande, achou que podia voltar pra terra como se nada tivesse acontecido. Foi recebido pelo silêncio dos que ele esqueceu e pelo pranto que ele mesmo semeou. Ndjomba contratou seguranças. Ndjomba cercou-se de muros, mas ndjomba não aguentou. Ndjomba fugiu. Hoje, ndjomba só anda entre Pemba e Maputo. A zona que ele diz amar não o reconhece. A terra que o pariu já não o chama filho. Porque o filho que vende a mãe, não merece herança.

Ah Ndjomba!

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