A política em Moçambique deixou aliás, nunca foi de ser um espaço de construção colectiva, de exercício da cidadania, da definição clássica aristotélica (zoom politicus), e sempre passou a se tornar um palco reservado a uma elite endogâmica. Ela já não é o campo onde se decidem os rumos da nação, mas um negócio de família, uma empresa herdada por sobrenome e não por mérito. É como se a política fosse um DUAT que se transmite por herança genética.
Por John Kanumbo
Defino a política moçambicana por um político: cujo endosamento é o político-empresário, o político-herdeiro, o político que nunca foi cidadão, mas sempre foi “filho de” “concunhado de”, “afiliado de” “lembejo de” étcetera, étcetera étcetera. É esse que representa o tipo dominante em Moçambique. Um ser que não lê Aristóteles nem Kant, muito menos Frantz Fanon e Foucault e Hannah Arendt, mas entende muito bem Maquiavel — ou melhor, entende a versão distorcida e prática do príncipe que manipula, engana e se mantém no poder a todo custo. Pois no maquiavel só lerá algumas citações. Étcetera.
E aqui entro com pensamento de Achille Mbembe, que fala da necropolítica — a política como gestão da morte, onde alguns decidem quem deve viver e quem pode morrer. Em Moçambique, a necropolítica é selectiva: os filhos da elite vivem nos bairros de betão e têm passaportes diplomáticos, enquanto os filhos da guerra — os verdadeiros combatentes — morrem nas aldeias e nas filas dos hospitais precários sem tratamento e sem pensão.
Byung-Chul Han, um pensador contemporâneo, fala do “cansaço do eu” na era neoliberal. Mas aqui, em Moçambique, o que temos é o cansaço do povo. O povo está cansado de esperar por uma justiça que nunca chega, por eleições que são promessas adiadas e por políticos que falam como deuses mas governam como déspotas. (“Estou cansada eu…” diz sempre a meninha que viraliza nas redes sociais moçambicana de nome Kiki) — Acrécimo.
Zygmunt Bauman dizia que vivemos tempos líquidos, onde tudo escorre — valores, relações, ideologias. A política moçambicana é mais do que líquida, é gasosa. Evapora-se no ar. Um partido no papel é um ideal, mas na prática é um clube exclusivo com senha de acesso baseada em sobrenomes, amizades, e antiguidades de guerra.
O que está a acontecer não é apenas corrupção. É uma mutação antropológica da própria ideia de política. É como se tivéssemos aceitado que o poder pertence a uma linhagem de “príncipes vermelhos”, filhos da luta armada, que transformaram o passado histórico num cartão de crédito vitalício.
A política em Moçambique é hilária. Hilária, sim — mas num sentido trágico. É como rir de um enterro, não por desrespeito, mas por já não se ter mais lágrimas. É um teatro com palhaços sérios, ministros cômicos, mornos e um povo silencioso que paga para assistir à sua própria humilhação. Ora vejamos o que se passa ainda…
A política moçambicana não é uma ciência, nem um ideal, nem sequer uma prática ética de gestão da coisa pública. É, na sua forma mais crua, um jogo de sobrevivência individual — um ritual de camuflagem camaradagem onde os oportunistas se travestem de patriotas. Não é pela pátria. É pela pança.
Quem entra nela, não entra para servir: entra para se salvar. E salva-se primeiro das filas do INSS, depois dos hospitais públicos, depois do desemprego, depois da pobreza. E depois de salvo, esquece-se de todos os outros que lá ficaram. Vira ex-pobre com amnésia. Vira elite com medo de voltar a ser povo.
Não há política no sentido de Hannah Arendt — como espaço de liberdade onde se revela a pluralidade humana. Há apenas um aglomerado de sujeitos com vestes partidárias, linguagens repetidas e discursos vazios que já nem eles próprios ouvem. O Parlamento tornou-se uma sala de teatro sem público efectivo, onde filho e pai estão lá e dorminhocas. E as eleições, um ritual de legitimação da mentira.
Para mim, a política em Moçambique não é feita por partidos. É feita por um político: o modelo do político moçambicano. Ele é o arquétipo. Chama-se “o Companheiro do Sistema”. Não interessa o nome — pode ser Joaquim, Filipe, Esperança ou Benjamina. O político moçambicano típico é um indivíduo que cresceu na lama, chegou ao poder pela mão do partido e agora escarra na lama de onde veio. Vive em bairros vedados com muros altos, carros escuros e alma baixa. Odeia críticas, ama bajuladores. Grita “o povo no centro”, mas só vê o centro comercial.
Ao contrário de Max Weber, que falava da política como vocação, aqui é profissão. Profissão hereditária.
E como dizia Pierre Bourdieu, a política também é um campo de luta simbólica: em Moçambique, os símbolos são estátuas velhas, hinos tristes e memoriais aos mortos, mas a luta é para vivos enriquecerem à custa desses mortos.
A política aqui tornou-se herança.
O filho do comandante herda o título de “filho do combatente”.
O neto do pai da pátria torna-se “herdeiro do direito de governar”.
Os sobrinhos dos ministros tornam-se “herdeiros da confiança”.
E os órfãos do povo tornam-se “herdeiros da fome”.
Isto não é política. É aristocracia de guerrilha.
É dinastia de revolucionários reformados.
Ora vejamos mais fundo:
Aristóteles diria que o fim último da política é o bem comum. Mas em Moçambique, o bem comum foi privatizado. O “bem comum come um”. O DUAT virou dote.
A terra é para quem a conquista à mesa dos conselhos. As minas, para quem mina o Estado com corrupção. E o povo? O povo é apenas estatística de pobreza que ajuda os governantes a conseguir financiamentos externos.
Mas tudo isto é possível por uma razão: porque a política, aqui, não é feita para ser compreendida. Ela é feita para confundir, cansar, distrair e calar. Ela é uma encenação constante, onde quem pensa é perigoso e quem critica é subversivo.
Assim, o político típico só se sente seguro quando rodeado de mediocridade, silêncio e reverência. E é por isso que digo: a política em Moçambique é hilária — quando enfim se compreende. Porque perceber isso dói, mas rir disso é o único anestésico que nos resta.
E tu, moçambicano, que ris ou choras enquanto lês isto, pensa: quem governa o teu destino?
Um ideal ou um estômago? Um servidor ou um predador? Um político ou apenas um actor de um drama chamado “República”?
A situação actual é tão grotesca que já não se pode chamar de política: é um teatro de absurdos. A cada semana um novo escândalo, um novo roubo, uma nova decisão judicial obscura, uma nova violação constitucional, um novo silêncio cúmplice. Parece que nos habituámos à vergonha — como quem se habitua ao cheiro de uma/o amante e um cadáver esquecido na sala.
Ematum, MAM, ProIndicus? Era só o começo. As dívidas ocultas não foram apenas um crime: foram a legalização do roubo de gerações futuras. E o povo? Silenciado com promessas de que “a economia vai melhorar”.
Mentira! A economia nunca foi feita para melhorar. Ela foi desenhada para servir os mesmos — os donos do sistema.
Vejamos o presente: o Conselho Constitucional já não é um tribunal. É um gabinete de confirmação de interesses políticos. Quando se trata de decisões sensíveis, não decide com base na Constituição, mas com base nos telefonemas que recebe. A justiça tornou-se refém do poder.
E quem diz isso não é só um filósofo — são os factos. Exclui-se uma coligação inteira, sem base legal consistente, e o país seguiu como se nada tivesse acontecido.
Isto não é democracia. É cinismo institucionalizado. E o que dizer do pacote eleitoral que muda conforme o vento partidário?
As leis eleitorais são redes costuradas por costureiras do partido, e o resultado já vem pré-definido: ganha quem manda. Não importa o voto do povo. O voto é só um ritual para dar verniz democrático a um sistema que fede. E enquanto isso, o povo continua a morrer de fome, desemprego, má educação e saúde miserável.
A juventude? Transformada em máquina de campanhas eleitorais: distribui camisetas, grita slogans, depois volta para o desemprego e desespero.
As mulheres? Usadas como vitrine de “inclusão” mas sem poder real. Os académicos? Comprados com bolsas, nomeações e medo.
Ninguém mais fala.
A universidade está calada. A igreja abençoa o regime. A sociedade civil, cooptada. Os jornalistas, ameaçados. E o povo, como sempre, anestesiado pela sobrevivência.
Mas atenção: o que temos não é crise. É método. A corrupção não é falha do sistema: é o sistema. A injustiça não é exceção: é a regra. A impunidade não é acidente: é plano.
Por isso, meu irmão e minha irmã, rir da política é só o primeiro passo. O segundo é compreendê-la. E o terceiro… é recusá-la nos moldes actuais. Porque não se reforma um tumor. Corta-se.
Não há soberania onde há submissão económica.
Moçambique, outrora símbolo de resistência à dominação colonial, tornou-se colónia dos interesses modernos:
– chineses,
– emiradenses,
– sul-africanos,
– europeus,
– e até mesmo daqueles “africanos de paletó” que aprenderam a roubar com os seus antigos mestres coloniais.
Os megaprojectos — gás, carvão, rubi, grafite, terras raras — são apresentados como salvação nacional.
Mas pergunto: quem enriquece com esses recursos? Quem vive melhor em Palma?
Quem tem hospital em Montepuez? Quem está a ver escola moderna em Tete?
O povo, não. O povo vê poeira, ruína, deslocamento forçado, e promessas que não alimentam. As multinacionais entram, exploram, e saem com lucro líquido em dólar. E o governo? Recebe sua comissão. Em silêncio. E com farda.
As chamadas zonas económicas especiais são só isso: zonas onde o povo não tem direito, mas o capital tem todas as regalias.
O direito laboral é ignorado. A fiscalização é nula. Os impostos são mínimos. E se o trabalhador se revoltar, é chamado de terrorista. Sim: há terror em Cabo Delgado.
Mas o verdadeiro terror é o silêncio sobre quem financia o caos.
Há uma guerra, sim. Mas uma guerra pela posse das riquezas, disfarçada de guerra contra o “extremismo”. Enquanto isso, milhares são deslocados e ninguém responde. Nem ONU, nem União Africana, nem a SADC. Porque todos mamam do mesmo sistema.
E voltamos à nossa elite: elite predadora, burocrática, vendida, que vende concessões por debaixo da mesa, que bate continência ao FMI, que diz “sim senhor” ao Banco Mundial, e que só é valente quando reprime estudantes e camponeses.
O que resta do Estado? Uma fachada. Uma bandeira e um hino. Mas sem alma. Porque a alma está hipotecada a interesses externos e internos que andam de mãos dadas.
Por isso, não há solução sem ruptura.
– Nem reforma administrativa,
– nem plano quinquenal,
– nem nova constituição, vão salvar um país que não quer salvar-se.
A salvação começa quando o povo perceber que não é parte do sistema, mas vítima dele. E aí, sim, começa a resistência — não com slogans bonitos, mas com consciência, organização, e recusa radical à miséria programada.
E qualquer coisa chamam ONGs. Organizações “Não Governamentais”, mas que vivem de fundos governamentais estrangeiros. Dizem-se “independentes”, mas não respiram sem permissão da embaixada X ou do consulado Y.
Têm nomes bonitos:
– Ajuda Humanitária,
– Salvação Global,
– Esperança para Todos,
– Pão e Água para África.
Mas o que fazem, na prática? Gerem a miséria. Administram a pobreza. Fazem negócio com a tragédia.
Cada crise humanitária é um investimento. Cada deslocado é uma linha no orçamento. Cada morto é uma estatística para renovar financiamentos. Sim, o sofrimento virou capital.
E os “especialistas” das ONGs? Chegam em carros blindados, ficam nos melhores hotéis, recebem salários em euros ou dólares, dão workshops de empatia em inglês técnico — e depois vão embora com relatórios bem escritos e zero impacto real.
Enquanto isso, o camponês perde a terra, a viúva continua com fome, a criança não vai à escola, e o pescador morre no mar sem colete.
A pobreza virou uma mercadoria. Há contratos, licitações, doações milionárias. Mas tudo isso gira em torno de manter o pobre… pobre o suficiente para continuar sendo ajudado.
Ninguém quer solução. Querem manutenção do problema. Porque resolver a pobreza seria acabar com os empregos de muitos “profissionais da pobreza”.
E as igrejas? Também entraram nesse jogo. Sobretudo as igrejas “empreendedoras”, as que fazem “negócios com Deus”. Têm filiais, franquias, dízimos digitais, consultores espirituais. A teologia virou start-up. O pastor virou CEO.
E o povo virou clientela. Falam de “cura” enquanto lucram com a doença. Prometem “salvação” enquanto vendem medo. Pedem oferta “de sacrifício” para comprar aviões, iPads e propriedades. E os pobres? Esses continuam acreditando. Porque a fome, quando espiritualizada, se torna eterna. A luta, por isso, é dupla:
– contra os governos que entregam o país,
– e contra as ONGs e igrejas que anestesiam o povo. Ambas são faces do mesmo monstro: um sistema que te quer obediente, miserável e crente.
Mas há um grito que vem das entranhas: basta!
Basta de esmolas disfarçadas de solidariedade. Basta de piedade estrangeira que humilha. Basta de discursos motivacionais sobre “resiliência africana” enquanto saqueiam o futuro de um continente.
Queremos justiça, não caridade. Queremos soberania, não projectos. Queremos liberdade, não campanhas com logótipos coloridos.
O sistema – seja ele político, econômico ou social – prospera quando a fé se torna sua aliada, quando o dogma religioso se transforma em uma ferramenta de dominação, um manto que encobre as desigualdades e mascara as injustiças. A religião, que teoricamente deveria ser uma força de libertação, de justiça e de revolta contra a opressão, se tornou, em muitos casos, a principal aliada dos opressores.