Para Rodrigues (2021), as bibliotecas Nacionais, são vistas como estabelecimento cuja função primordial reside em salvaguardar e tornar acessível a herança cultural deixada pelos cidadãos de determinado pais, através de sua mais evoluída forma de registo do pensamento que é a escrita, contribuem efectivamente para a construção da memória colectiva da nação. Que guardiã do passado, é um organismo pulsante que enfrenta um dilema ancestral sob nova roupagem: como ser um farol digital sem apagar a chama das narrativas que a tornaram sagrada?
Por Martinho Cumbane
No epicentro desse desafio está uma contradição do nosso tempo: a mesma tecnologia que ameaça homogeneizar culturas pode ser a ferramenta para salvá-las. Enquanto o Manifesto da Federação Internacional de Associação de Bibliotecas e Instituições (IFLA) e a organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) (2022), proclama bibliotecas como “catedrais da autonomia intelectual”, a realidade moçambicana sussurra urgências particulares. Imagine um baú de madeira entalhada, cheio de manuscritos da resistência anticolonial, relatos orais em changana traduzidos para a versão bidimensional de códigos de barras capazes de transmitir informações através de um scan (QR codes), ou partituras de marrabenta transformadas em experiências de realidade aumentada. Esse é o paradoxo a ser desvendado: digitalizar sem descaracterizar, inovar sem esquecer.
Os números contam uma história crua: 34% de conectividade nacional escondem abismos geográficos onde o sinal de internet é tão raro quanto água potável. Enquanto isso, documentos únicos se desfazem em prateleiras sob o assédio implacável de climas tropicais. Porém, nas fissuras desse cenário, brotam soluções tão inventivas quanto a arte Maconde. Que tal um evento que reúna programadores urbanos, contadores de histórias rurais e griots (músicos da tradição oral) para criar aplicativos de baixo consumo de dados em línguas como emakhuwa? Ou parcerias com pescadores do Índico para mapear padrões de enchentes usando inteligência artificial treinada em arquivos meteorológicos coloniais?
Aqui reside o pulso da questão: transformar a biblioteca num laboratório de futuros possíveis. Não basta digitalizar acervos; é preciso reencená-los. Um códice do século XVIII sobre rituais de iniciação Yao poderia virar um jogo educativo em 3D. As cartas de inédita da guerrilheira Josina Machel, digitalizadas, dariam voz a um chatbot que explica a libertação nacional para adolescentes do TikTok. Essa não é traição à memória, mas ressurreição em linguagens novas.
Os obstáculos? Tão reais quanto as cicatrizes da história: falta de infraestrutura, carência de especialistas em preservação digital, orçamentos que mal cobrem a luz eléctrica. Mas e se repensarmos o conceito de “parceria”? Empresas de telecomunicações poderiam adoptar salas de digitalização em troca de direitos de nomeação (naming rights) em exposições virtuais. As universidades europeias com acervos sobre Moçambique colonial poderiam devolver cópias digitais como reparação histórica. Até a diáspora moçambicana, através de financiamento colectivo, poderia custear scanners de última geração para digitalizar arte tradicional.
No cerne dessa transformação está uma revolução silenciosa: redefinir o que é “patrimônio”. A biblioteca do futuro não escolherá entre o manuscrito de Mia Couto e Azagaia. Ambos são tijolos da identidade nacional. Por que não criar um “Tinder da cultura”, onde jovens conectam livros raros a shows de rap moçambicano? Ou um clube de leitura que discute Marx e Mia Couto enquanto remixa trechos em plataformas de áudio?
O caminho é claro: a Biblioteca Nacional precisa tornar-se uma plataforma de tradução cultural. Não apenas entre línguas (Português, Macua), mas entre temporalidades. Seus curadores deveriam ser versados em algoritmos e paleografia, capazes de decifrar tanto pergaminhos quanto metaversos. Afinal, a próxima geração não perguntará “onde está seu livro publicado?”, mas “em qual servidor está seu legado digitalizado?”.
Ao entardecer, quando a luz do Índico banha Maputo, imagina-se a biblioteca como um organismo biotecnológico: raízes mergulhadas em memórias ancestrais, galhos estendidos em nuvens de dados. Para chegar lá, precisará de mais que scanners — precisará de ousadia poética. Porque preservar identidade no século XXI não é embalsamar o passado, mas reinventar continuamente as perguntas: O que nos torna moçambicanos? E como será essa resposta nos hologramas do amanhã?