Por Osas
A crise é uma constante que redefine realidades, impulsionando governos, empresas e, no fim das contas, a vida das pessoas. No cenário atual, a suspensão abrupta dos fundos do PEPFAR – uma das maiores fontes de financiamento para programas de HIV/SIDA e Saúde Sexual e Reprodutiva (SSR) global e em Moçambique – não é apenas uma decisão administrativa, mas um golpe fatal contra milhares de pessoas que dependem desses serviços para sobreviver. Sem aviso prévio, postos de saúde foram fechados, organizações demitiram funcionários e medicamentos essenciais tornaram-se inacessíveis. Se antes a USAID garantia suporte a uma rede global de cuidados médicos, agora resta apenas o silêncio nas clínicas e a incerteza nas comunidades.
O impacto dessa decisão não se limita à saúde pública, mas afecta também a economia e a sociedade de maneira geral. A dependência externa do país no sector da saúde, que chega a quase 90% dos recursos destinados a programas de HIV e SRHR, deixa Moçambique vulnerável a qualquer mudança nas prioridades globais. A suspensão dos fundos do PEPFAR afecta profundamente a capacidade de resposta do sistema nacional de saúde, colocando em risco a saúde de centenas de milhares de pessoas. De acordo com uma pesquisa do Observatório do Cidadão para a Saúde, desde 2018, o Fundo Global destinou US$ 249 milhões para o HIV em Moçambique, enquanto o PEPFAR investiu aproximadamente US$ 395 milhões no mesmo período. Por seu lado, o Governo de Moçambique contribuiu com pouco menos de 3% do total da despesa com o HIV e SSR. Estando numa situação de dependência, quase 100 % do TARV são mobilizados pelos parceiros e doadores.
Para dar uma ideia da magnitude do impacto, o programa PEPFAR representa US$ 7,5 bilhões anuais na resposta global ao HIV, sendo os EUA os maiores doadores do Fundo Global, com US$ 6 bilhões destinados para a reposição de 2023-2025.
O Fim da USAID e o Caos na Saúde Global – Um Retrocesso de Décadas em Apenas 90 Dias
A administração Trump desmontou a USAID, agência responsável por distribuir bilhões de dólares em ajuda global. O congelamento de 90 dias imposto pelos EUA bloqueou os fundos para projectos de saúde enquanto ocorre uma “revisão” para garantir que estejam alinhados com a política “America First“. Esse período de três meses significa que todos os gastos estão suspensos para uma auditória de relevância financeira e programática, forçando os parceiros a interromper actividades e reavaliar contratos de trabalho.
Na gíria moçambicana e “memerizando” a situação, a suspensão da USAID gerou piadas sobre a nova realidade dos funcionários dos vários projectos, que agora terão que “beber água da torneira e trocar bebidas premium pela Gongonza”. Mas, por trás da sátira, a crise é grave. O impacto da suspensão vai muito além do estilo de vida dos funcionários da USAID.
A suspensão das operações da USAID, levou o embaixador americano, Vrooman, escrever uma mensagem ao secretário de Estado, Marco Rubio, que a retirada dos funcionários da agência afetará 114 programas de ajuda, deixando 225 trabalhadores locais em incerteza. A falta de supervisão comprometeria a administração de US$ 1,5 bilhão em programas críticos, muitos destinados à assistência humanitária que salva vidas (in VOA).
Cerca de 222.000 pessoas ficaram sem acesso a antirretrovirais, enquanto 271.000 profissionais de saúde foram directamente impactados pela suspensão do financiamento. Além disso, diversas clínicas que ofereciam tratamento gratuito precisaram fechar suas portas. A situação se agrava em países como Uganda, onde clínicas já anunciaram que, dentro de um mês, ficarão sem kits de testagem de HIV, medicamentos para tuberculose e preservativos.
Em Moçambique, mais de dois milhões de pessoas vivendo com HIV enfrentam a incerteza do amanhã, sem garantia de continuidade no tratamento. E um programa específico da USAID oferece tratamento a 389.000 pessoas vivendo com o vírus. A interrupção desse apoio pode resultar em sérias consequências para a saúde pública, agravando a situação de muitos cidadãos vulneráveis. Para piorar, o governo moçambicano ainda não se pronunciou oficialmente sobre as medidas concretas a serem tomadas. Até o momento, há apenas a informação de que “conversas paralelas” estão sendo mantidas com os parceiros. No entanto, pouco se sabe sobre o conteúdo dessas negociações, suas estratégias ou eventuais soluções a serem implementadas.
A UNAIDS afirmou que 20 milhões de pessoas que vivem com HIV dependem directamente dos EUA para acesso ao tratamento, e que a falta desses serviços pode levar ao colapso do sistema global de resposta ao SIDA. O Fundo Global alertou que, se o PEPFAR for descontinuado, 6,3 milhões de pessoas morrerão de SIDA até 2029, enquanto 8,7 milhões de novas infecções ocorrerão.
De acordo com a UNAIDS a suspensão do financiamento pelo governo dos Estados Unidos para a prevenção do HIV resultou em um aumento nas novas infecções por HIV entre adultos nos países apoiados pelo PEPFAR. Desde 21 de janeiro de 2025, foram registradas 48.078 novas infecções, em comparação com 45.172 infecções que teriam ocorrido se o apoio governamental tivesse continuado. Isso representa um aumento de 2.906 novas infecções devido à interrupção do financiamento.
A Directora executiva do UNAIDS, Winnie Byanyima, alertou que, se o apoio dos EUA aos programas de AIDS não for retomado, o número de novas infecções por HIV poderá aumentar mais de seis vezes até 2029, resultando em milhões de mortes e crianças órfãs (In apnews.com).
Esse cenário não apenas compromete a luta contra o HIV, mas também os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 3, que visa acabar com a epidemia de HIV/SIDA até 2030. Sem garantia de recursos adequados, a meta 95-95-95 torna-se cada vez mais distante.
Segundo o Dr. Tom Wingfield, especialista em tuberculose da Escola de Medicina Tropical de Liverpool, “as pessoas não percebem o alcance da USAID. Ela financiava nutrição, higiene e acesso à água potável – pilares essenciais para combater doenças como tuberculose e diarreias infantis. Sem isso, veremos surtos incontroláveis“. (In BBC).
A destruição dos serviços de HIV/SIDA e SRHR teve efeitos imediatos e drásticos. A interrupção no fornecimento de PrEP e medicamentos para gestantes seropositivas aumenta o risco de transmissão vertical do HIV, enquanto o fechamento de clínicas agrava a vulnerabilidade de populações-chave como LGBTQI+ e trabalhadoras do sexo, que dependiam desses serviços para atendimento médico e apoio psicológico. Além disso, os atrasos nos exames de carga viral afetam a eficácia do tratamento e comprometem o planejamento de atendimento. O impacto se estende ainda ao acesso a contraceptivos e ao suporte a sobreviventes de violência sexual, com o fechamento de centros de apoio para mulheres e meninas vítimas de abuso.
Para o Dr. Peter Taylor, especialista em desenvolvimento internacional da Universidade de Sussex, “estamos lidando com um efeito cascata. Sem apoio da USAID, clínicas de malária fecharão, crianças sofrerão de desnutrição, doenças infecciosas se espalharão rapidamente. E o mais preocupante: as pessoas estão perdendo a confiança no sistema de saúde“. (In BBC)
A Pausa do PEPFAR e a Corrida Contra o Tempo
No dia 20 de janeiro de 2025, o Departamento de Estado dos EUA anunciou uma pausa imediata de 90 dias para toda a assistência externa, incluindo o apoio ao PEPFAR. Em 28 de janeiro, o Secretário de Estado aprovou uma “Isenção Humanitária de Emergência”, permitindo que pessoas continuem acessando tratamentos vitais contra o HIV. Essa medida protegeu mais de 20 milhões de pessoas que dependem do PEPFAR para acesso ao tratamento. Já em 1º de fevereiro, o Bureau de Segurança Global em Saúde e Diplomacia (GHSD) detalhou a implementação da isenção, permitindo apenas a continuidade de serviços essenciais de HIV, testagem e prevenção da transmissão vertical, enquanto todas as demais atividades permanecem suspensas.
A ordem de suspensão das operações da USAID foi emitida em 4 de fevereiro, colocando todos os funcionários da agência em licença e exigindo seu retorno aos EUA dentro de 30 dias. No entanto, uma decisão judicial temporária suspendeu a ordem, após uma ação emergencial movida pelos trabalhadores, alegando que a medida é inconstitucional e causaria uma “crise humanitária global”. A suspensão da ordem é válida até 14 de fevereiro, quando se aguarda uma decisão final.
O Momento Decisivo: Moçambique entre a Dependência e a Sustentabilidade
A crise evidenciou a fragilidade dos sistemas de saúde altamente dependentes de financiamento externo. Nigéria, Tanzânia e África do Sul buscam alternativas para cobrir a lacuna deixada pelo PEPFAR, enquanto a UNAIDS e a OMS mobilizam parceiros para evitar um colapso total. No entanto, a realidade é dura: os orçamentos internos desses países não absorvem a totalidade do impacto.
No entanto, apesar da crise, há uma chama de esperança. Moçambique tem uma história de resistência. O país já superou uma guerra civil, enfrenta o terrorismo, desastres naturais e crises epidémicas. Talvez este momento de instabilidade seja mais uma prova pela qual o país precisa passar. A crise também pode ser uma oportunidade para repensarmos o futuro. Se nem paracetamol é garantido nos hospitais de referência, o que será do programa de HIV sem seus parceiros durante 90 dias? O recente governo de Presidente Chapo tem agora a oportunidade de redefinir suas estratégias e garantir que o próximo Plano Estratégico Nacional para o HIV/SIDA (PEN VI) seja mais autónomo e sustentável. A implementação da Declaração de Abuja, que exige que pelo menos 20% do orçamento do Estado seja alocado para a saúde, poderia ser uma resposta eficaz para diminuir a dependência dos fundos externos e garantir a autonomia do sistema de saúde de Moçambique.
As notícias trazem um alívio parcial com a aprovação da “Isenção Humanitária de Emergência”, garantindo a continuidade dos tratamentos vitais para o HIV. No entanto, a retomada dos programas financiados pelo fundo americano ainda é incerta e limitada. O futuro permanece instável, exigindo soluções concretas e sustentáveis para evitar novos colapsos no sistema de saúde.
A crise de hoje é um reflexo do que acontece quando os países deixam de investir em sua própria infraestrutura e dependem demasiadamente de parceiros internacionais. Mas, ao mesmo tempo, é um ponto de inflexão crucial para que Moçambique reforce sua capacidade interna de resposta e, no futuro, não dependa da boa vontade dos “vizinhos da USAID” para garantir algo tão básico como o direito à saúde.