Por: Bendito Nascimento
O telefone tocou exactamente às cinco e meia. Fufa pegou no aparelho com os dedos trémulos, ouvindo a voz do secretário do New president, que, de forma bem treinada e cortês, anunciou: “Comandante Fufa, foi determinada a sua exoneração. A partir de hoje, a sua missão está cumprida.” Fufa ficou em silêncio, com o coração apertado. Um comandante, exacto! O homem que durante tanto tempo foi o terror nas ruas, a sombra que se erguia nas esquinas dos bairros, agora caído e dispensado como um velho terno. Ele sabia que não podia mais ser a mão forte que controlava os ânimos da multidão.
Lentamente, ele largou o telefone e olhou para o tecto. O branco da parede parecia desbotado, como sua vida naquele momento. Sentiu uma dor profunda, não de um corpo cansado, mas de uma alma que se via retirada do palco, sem direito a um aplauso ou uma palavra de gratidão. Era o fim da linha. Raimundo Fufa, aquele homem alto e imponente, que havia comandado operações de repressão com olhar severo e voz grave, agora estava ali, como um pedaço de madeira podre em um canto qualquer.
Naquele exacto instante, a cidade de Maputo parecia rir dele. O som do trânsito começava a invadir a casa, os vendedores a gritar pelas ruas e o som distante de um rádio na casa do vizinho, onde Alexandre Chiure e Borges Nhamirre falavam de política, de eleições, de corrupção. Fufa sentiu o peso da cidade. Aquela cidade que ele uma vez pensou controlar, agora o controlava. Ele não passava mais de um personagem que se esvaiu na poeira do esquecimento.
E se existia uma coisa que ele sabia fazer bem, era comandar a repressão. Por anos, ele liderou a polícia, enfrentando a multidão com punhos de ferro e palavras de aço. Ele foi a cara que apareceu nas notícias quando os confrontos aconteceram, o homem que se fez presente nas ruas, empunhando a força do Estado, e às vezes, a própria crueldade. Fufa sempre soube que seu trabalho, embora necessário para alguns, não era exactamente popular entre o povo. Mas, de alguma forma, ele acreditava que o papel dele era proteger a ordem. Não importava quem estivesse a ser esmagado pelo peso dessa ordem, contanto que fosse “para o bem da nação”. Até que a ordem se virou contra ele.
Agora, ao olhar pela janela, ele percebeu que tudo o que tinha eram memórias que ninguém mais queria. Lembranças de ruas fechadas, barricadas erguidas, jovens a fugir de sua autoridade, protestos que ele, com um sorriso impassível, reprimiu. O próprio povo, que ele achava que controlava, estava agora distante. Ninguém mais o cumprimentava. Ele não era mais o comandante, apenas o ex-comandante, e a palavra “ex” soava como um veneno doce.
O rádio, que ainda estava ligado na casa do vizinho, trouxe uma notícia que lhe caiu como uma flecha no peito. A nova administração reorganizava as forças de segurança, a criar uma nova estratégia, mais amigável, mais moderna. Era a substituição da velha guarda. Fufa sentiu-se como um relógio velho, cujo mecanismo já não servia para mais nada. Uma peça de antiguidade, uma relíquia dos tempos passados, que ninguém queria mais.
Às 8h, Fufa vestiu a sua última farda. Era uma farda que, para ele, havia sido sinónimo de poder. Colocou os galões de general nos ombros, mas o peso parecia agora insuportável. O reflexo no espelho parecia rir de si. A farda estava apertada, a barriga, que nunca foi tão proeminente, parecia sobressair. Seus cabelos, outrora bem alinhados, estavam desordenados e grisalhos. Ele riu, uma risada amarga, que ressoou na casa vazia. “Comandante Fufa, hein? Parece mais um soldado de brinquedo,” murmurou consigo mesmo.
Na rua, a cidade seguia com sua rotina imperturbável. Ele desceu para comprar um jornal. Na banca, o vendedor, que já o conhecia de vista, fez um cumprimento breve, sem entusiasmo. Fufa pensou por um momento se deveria começar a cumprimentar os outros, como antigamente, com aquele ar de quem sabe o que se passa. Mas, naquele dia, parecia desnecessário. Ele não era mais a pessoa que fazia os outros sentirem-se pequenos diante de si. Ele não tinha mais o poder de silenciar a voz dos outros com um simples olhar. Agora, ele era só mais um, um ex-comandante, um ex-poder.
Na volta para casa, a única coisa que parecia lhe restar era o som dos passos vazios, a ecoar no passeio, misturados com os carros que passavam. Fufa entrou novamente, como um homem que já não pertence a lugar algum. E, por algum tempo, ficou ali, sentado, a olhar para o vazio. O rádio ainda tocava na casa do vizinho, mas ele já não prestava atenção nas notícias. Não havia mais nada para ouvir. Raimundo Fufa, o homem que uma vez controlou tantos, estava agora no fim de sua própria linha. E o fim, por mais que ele quisesse, não era digno de uma despedida triunfal.
O povo que ele um dia comandou agora seguia sua vida. E ele? Raimundo Fufa agora era apenas um homem que, na sombra de sua própria farda, procurava entender onde e quando se perdeu.