Não era sobre as chuvas que nunca vinham nem sobre o mercado de mangas roubadas, mas sim sobre os tais “ratos do celeiro”, uma expressão que o velho Nhaviane, o contador de histórias, usava sempre para se referir aos políticos locais. “São ratos espertos”, dizia ele, “que entram pelas frestas e saem pelas sombras, mas nunca deixam de engordar à custa do milho do povo”.
Naquele dia, os ditos ratos, um grupo de deputados que jurava defender os interesses da aldeia, haviam decidido finalmente entrar no celeiro, mas pela porta dos fundos, como quem teme ser apedrejado se ousasse cruzar a entrada principal. O celeiro, claro, era a grande casa das leis, onde se discutiam os destinos da nação, mas também onde se repartiam as maiores migalhas.
Na noite anterior, conta-se que houve uma reunião secreta na toca mais escondida da aldeia, onde os chefes dos ratos debatiam o que fazer. O Grande Rato-Chefe, conhecido por sua astúcia e língua afiada, levantou-se e disse:
— Irmãos, o povo espera que mantenhamos a promessa. Que não entremos naquele celeiro enquanto o gato, o verdadeiro ladrão, lá estiver a ronronar sobre os sacos de milho. Mas lembrem-se: se não entrarmos, outros ratos tomarão nossos lugares. E o que será de nós? Voltaremos ao mato? À caça de raízes e frutos secos?
A plateia de roedores ficou em silêncio. Era um dilema. Ficarem de fora significava perder o queijo que tanto almejavam, mas entrar seria uma traição à palavra dada ao povo.
Foi quando o Rato Filósofo, sempre perdido em seus devaneios, sugeriu:
— E se entrarmos pela porta dos fundos? Assim ninguém nos verá. Seremos como a chuva da madrugada, que chega sem anunciar e deixa o solo molhado antes que o galo cante.
E assim foi decidido. No dia seguinte, enquanto o sol ainda estava tímido, os ratos começaram a se esgueirar para o celeiro. Alguns entraram pelos buracos das paredes, outros se penduraram nos galhos das árvores para descer pelo telhado. O povo, ao longe, via tudo com olhos semicerrados. “Lá vão eles”, murmurava dona Malucha, a vendedora de amendoim, enquanto ajeitava o lenço na cabeça. “Disseram que iam lutar por nós, mas estão apenas a lutar para encher a barriga.”
Na praça central, um velho tocador de timbila compôs uma nova canção em homenagem ao momento. As crianças riam-se da letra, que dizia:
“Rato que boicota celeiro,
de barriga cheia vira conselheiro.
Promete lutar contra o gato,
mas no fundo só quer o prato.”
No celeiro, o Gato Mestre observava tudo com seu ar de superioridade. Era uma gata gorda, de pelo brilhante, dificuldade de articular palavras, e andando sempre com a sua cria, também, andava sempre com um sorriso de quem sabia que, no fim das contas, todos os ratos lhe deviam alguma coisa. Quando viu os ratos a entrar pela porta dos fundos, deixou sair um miado irônico:
— Ora, ora, vejam só. Os que não queriam pisar no celeiro, aqui estão de volta. Será que é fome ou saudade?
Um dos ratos, mais corajoso, respondeu:
— Estamos aqui porque o povo nos mandou.
A gata riu alto, um riso que ecoou pelas paredes do celeiro, acordando a sua cria que dormia numa das cadeiras do celeiro.
— O povo? Não me façam rir. Vocês estão aqui pelo mesmo motivo que eu: porque sabem que, fora daqui, não há milho, só fome.
Os ratos ficaram em silêncio. O gato tinha razão, mas quem ousaria admitir?
Lá fora, o povo começava a murmurar. Alguns defendiam os ratos, dizendo que era melhor eles entrarem no celeiro do que deixarem tudo nas mãos do gato. Outros, mais cínicos, afirmavam que não havia diferença entre uns e outros. “Rato ou gato, todos querem o mesmo: o milho”, dizia o jovem Lário, que sonhava em deixar a aldeia para tentar a sorte na cidade grande.
Nhaviane, o velho contador de histórias, resumiu a situação com uma parábola:
— Na savana, o leão e a hiena disputam a carcaça do antílope. O leão se diz rei, a hiena se diz justa, mas, no final, o antílope continua morto.
O povo riu, mas era um riso amargo. Sabiam que, no fundo, eram eles o antílope da história.
Quando o dia terminou, e o sol se pôs sobre Xikwavela, os ratos estavam instalados no celeiro, a gata continuava em seu canto, e o povo voltava para suas casas, resignado. “É sempre assim”, dizia dona Malucha. “Prometem-nos um banquete, mas o que recebemos são migalhas.”
E Nhaviane, sentado à sombra de uma mangueira, encerrou o dia com mais uma reflexão:
— O rato que entra pela porta dos fundos pode enganar o gato, mas nunca engana a fome. E nós, meu povo, até quando vamos aceitar viver de sobras?
O silêncio foi a única resposta. Afinal, em Xikwavela, as palavras sempre foram abundantes, mas as acções, essas sim, eram como a chuva: prometidas, mas raramente cumpridas. (Bendito Nascimento)