Nas 24h que antecederam a tomada de posse do actual Presidente, havia um sentimento colectivo de alívio, devido, talvez ao elevado nível de sacrifícios que os moçambicanos tiveram que consentir, entre eles, até o não pagamento de 13º salário, que provavelmente teria sido um marco importante para fazer esquecer os golpes sofridos social e moralmente nos últimos 10 anos.
Fizeram parte da cerimónia de Tomada de Posse da X Legislatura, deputados do Partido Frelimo como era de se esperar e surpreendentemente os do PODEMOS, acto entendido por uns como traição ao povo e desalinhamento com o candidato presidencial que suportou, Venâncio Mondlane. Eu prefiro olhar para a atitude do PODEMOS como de susto, pois de um partido qualquer, cuja ambição nestas eleições era apenas de conseguir um pouco de dinheiro, aquele que o Estado distribui para os partidos políticos, conseguiu graças ao candidato presidencial que suportava, fazer eleger um número razoável de deputados, destronando assim, a RENAMO da segunda posição, em que vinha de forma quase “vitalícia”, desde 1994. Aliás a hibernação da RENAMO valeu-lhe regalias através do Estatuto Especial do Líder do Segundo partido com assento parlamentar (Lei nº. 33/2014).
No meio deste susto caracterizado por desconhecimento das leis nacionais e regimentos parlamentares, foi, o PODEMOS além de tomar posse como único partido da oposição, apresentar duas figuras para concorrerem a mesma posição, de vice-presidente da Assembleia da República, o que faria sentido numa eleição interna, dentro do partido, se tivessem sido feitas as lições de casa. O que não se notou na bancada da Frelimo, que já havia “indicado” na reunião da Comissão Política, que teve lugar no último fim-de-semana, quem deveria dirigir o parlamento, que apesar de não colher consensos populares pela sua fraca capacidade discursiva, intelectual e profissional, notou-se um alinhamento interno, de tal modo que já no dia anterior já se sabia quem seria e no dia da posse tinha a mínima ideia do que a X Legislatura deverá fazer, embora de forma vaga e incoerente.
Esta atitude não foi notória do lado do PODEMOS, que para além de desalinhamento com o seu candidato, um dos deputados foi mais ousado ao chamar os outros deputados que não foram à cerimónia de Tomada de Posse, nomeadamente os da RENAMO e do MDM de ratos e o Presidente do partido a assumir os deputados do seu partido como filhos que deverão aprender dos pais, a Frelimo. O que não é errado e não deveria surpreender a ninguém, porque o PODEMOS surgiu de algumas pessoas e jovens dissidentes da OJM. E, mesmo se não viesse daquela organização, é bastante difícil esperar alguma mudança substancial da oposição moçambicana, na medida em que vem toda da mesma escola, Frelimista. Daí que enquanto a Frelimo não mudar a sua forma de fazer política e gerir a coisa pública, dificilmente a oposição mostrará acções distintas. Por isso, nos últimos 10 anos, o único município que esteve nas mãos da oposição e mostrou melhorias significativas é o da Beira, o que pode ser explicado pela sua historicidade e das suas gentes.
Neste susto em que estamos quase todos, a única coisa que mais nos aliviou foi o facto de não mais ser possível o sonho do terceiro mandato e a esperança de que dias melhores virão, tanto que a esperança é a última coisa que morre nos humanos, pois não pode ter sido em vão tanta dor, mortes e sofrimento. E no meio deste susto lembrei-me da obra de Hosten Yassine Ali intitulado a A Cabana: as estórias dos laços para a eternidade, editado pela Ethale Publishing em 2023. As estórias contadas neste livro têm como espaços geográficos, Maputo, para onde Finiosse vai para trabalhar e ganhar dinheiro para poder ajudar a sua família, Vilankulos, donde a mãe terá fugido grávida para poder salvar o seu filho, pois o homem que a engravidara, o pai de Finiosse tinha feito muitos pactos com curandeiros, de modo que de dois em dois anos morria alguém da famíla e neste mesmo intervalo comprava carros provenientes de África do Sul. Quando a mãe de Finiosse foge, refugia-se em Mambone, onde se tornou na sexta esposa de um curandeiro. Portanto, é na cabana onde literalmente Finiosse é gestado e cresce achando que era filho de Mambone, onde obviamente era guardado e protegido pelas raízes do curandeiro que assumira a mãe como sexta esposa e ele como o filho.
Entretanto Finiosse chega a Maputo consegue um trabalho, que infelizmente não lhe pagava o suficiente para poder mandar com regularidade algum dinheiro para a sua família em Mambone, o que gera uma espécie de descontentamento familiar. Finiosse era guarda e como qualquer guarda não presidencial não ganharia tanto como se iludira. Tempos depois decide casar-se com uma manhambane, faz um casamento em Maputo e em Inhambane com o mesmo cenário decorativo, claro que não era o escolhido pela esposa, pois nestas coisas de casamento, às vezes, algumas famílias assumem maior protagonismos que os noivos e tomam decisões que a si não competem e para não se entrar em barulhos “desnecessários”, muita coisa deixa-se passar. O que Finiosse e sua esposa não tiveram em conta é que ao fazer um casamento naquelas dimensões e proporções estavam a passar às suas famílias, sobretudo a de Finiosse a ideia de que eles tinham muitas posses em Maputo.
As despesas decorativas do casamento de Finiosse, que lhe custaram quase tudo que havia economizado, chegando até a contrair dívidas, podem ser comparadas com as nossas despesas de investiduras, cujas tendas chegaram a custar mais 9.600.000,00mts, sem contar com as despesas de aparelhagem, cadeiras e outros artefactos de ornamentação. Em contrapartida, não conseguimos como Estado, pagar aos funcionários e agentes de Estado o seu 13º salário, que não é nenhum favor que o governo faz aos funcionários e agentes de Estado e nem deveria ser condicionado a existência de verba ou disponibilidade financeira.
Por isso, quando Finiosse é morto por conta da dívida que Vilankulos, seu pai biológico, havia contraído, nestas cabanas em busca de riqueza e poder e só deveria ser paga com o sangue da mesma linhagem, os seus familiares exigem da esposa a casa que com muito sacrifício haviam conseguido erguer e o salário de dois meses que o patrão havia prometido dar, apesar deste ter deixado filhos menores. Finiosse era guarda, então não ganhava tanto, porém isso era irrelevante para a família, desde que o dinheiro lhes fosse dado. De igual modo a União Europeia e outros actores internacionais não se importam se os filhos desta pátria andam famintos, descalços e esfarrapados, desde que tirem, através de quem governa, proveitos do gás natural, rubis, ouro, petróleo e outros inestimáveis recursos que temos no nosso solo e subsolo. Por isso a posição tomada pela União Europeia para Venezuela é diferente da de Moçambique. É o neocolonialismo da maneira mais crua como diria Azagaia.
O patrão do marido um dia dissera-lhe que via Finiosse todas as noites no seu posto de trabalho, onde morrera repentinamente. A esposa inconformada, pois sentia sempre a presença do seu marido também na casa, onde até chegava a tomar banho e usar a sua toalha, decide procurar uma cabana para entender o que se passava. Soube de lá de que o seu marido fora usado para pagar uma dívida e havia um espírito do mal que lhes controlava o tempo todo. Foi o mesmo que levou Finiosse. Como este, o Finiosse, ainda não tinha sido recebido, pois a sua morte fora severamente contestada, continuava o seu espírito vagueando e protegendo a sua família para que nada de ruim lhes acontecesse. A sua esposa recebeu da cabana garantia do curandeiro, de que tudo seria feito para que Finiosse fosse descansar em paz. Para além de Finiosse, o seu avô que era famoso em fazer cair feiticeiros nas noites, também os protegia. Por isso, poderia ficar sossegada que brevemente voltaria tudo ao normal.
Todavia, a maior frustração da esposa de Finiosse ocorre quando perde um dos seus filhos por atropelamento. A criança, primeiro ficara doente de repente. Chegou a ficar internada, mas depois melhorou. Na cabana percebe que a promotora daquele acidente tinha sido a sua sogra, a mãe do seu falecido marido e eram controlados através de uma capulana que recebera e decidira guardar em sua mala. O que ela não sabia era de que aquele presente de capulana, era um presente envenenado. Assim como muitos dos presentes que recebemos quando estamos no poder ou pretendemos ascendê-lo. Finiosse assim como o filho são usados para pagar uma dívida que ambos desconheciam. A esposa de Finiosse fica devastada e chega a esbofeteá-la quando esta aparece em sua frente a fingir sentimentos, como sempre fazem os feiticeiros e os políticos sobretudo quando desejam ganhar simpatia e tempo para uma nova investida.
A obra A Cabana de Hosten Yassine Ali, mais do que convidar-nos a reflectir sobre a situação social e cultural de um povo, conscientiza-nos sobre os pactos que, muitas vezes, os nossos pais fazem para nossa protecção ou para as suas ascensões políticas e económicas. Aliás, inúmeras vezes não nos questionamos como tantas mortes não são capazes de incomodar quem está no poder ou controla-o mundialmente. Contudo, quem estuda a política e os regimes totalitários facilmente saberá que não é o sangue dos inocentes que incomoda as suas consciências. Pois para muitos o que mais importa é o poder e não as vidas que se perdem.
A Cabana é um tratado de Sociologia, Moral, Antropologia Cultural e Filosófica que nos adverte sobre as consequências do poder (i)legítimo e dos pactos que fazemos em benefício próprio e não dos outros, o que pode fazer com que estejamos em sustos e medos constantes. Aliás, alguns já começaram a murmurar e o rei treme na poltrona que lhe foi preparada, visto que enquanto o povo pensa na relação mal resolvida entre si e o seu anterior governo, o novo rei, se não mudar e alargar o ângulo da sua visão; se não trabalhar para restabelecer a confiança entre o povo e o Estado; se não corrigir as inúmeras coisas tortas que o seu antecessor deixou e se não apostar nos vários jovens competentes que este país tem, pois não se percebe como um país maioritariamente jovem, pode ter no parlamento indivíduos com idades acima de 60 anos e provavelmente no novo governo, pensará sempre na possibilidade de um golpe de Estado. Virá o seu poder, neste curto espaço de tempo, sendo posto em causa constantemente. Haverá um medo que lhe corroerá a alma. E será um sentimento que nenhum segurança poderá evitar. Portanto, que não vivamos nos próximos 5 anos como se tivéssemos algum pendente ou com a vida ou com alguém em particular; que os sorrisos, embora disfarçados, que hoje cobrem os nossos rostos, não sejam substituídos por rugas e nervos nos próximos dias e descontemos desproporcionalmente naqueles que são a razão da existência do Estado, o povo.
O livro A Cabana de Hosten Yassine Ali encontra-se disponível na Khapes, LDA em Chimoio e na Ethale Publishing em Maputo.
Timóteo Papel
Chimoio, 15-01-2025