Por Bendito Nascimento
Saí de Quelimane com a esperança de encontrar apenas as curvas da estrada, mas cheguei a Maputo com o peso de um país que parece esquecer os seus filhos. A EN1, o coração da nossa circulação nacional, tornou-se um espelho partido, onde cada buraco reflecte a miséria e o abandono de uma nação.
A EN1 já não é uma estrada; é uma metáfora cruel do nosso fracasso colectivo. Buracos tão profundos que parecem poços sem fundo, capazes de engolir não apenas os pneus dos carros, mas também os sonhos de quem por ali passa. Os condutores transformam-se em dançarinos hesitantes, desviando-se de crateras que desafiam a paciência e a lógica.
E em meio a esse balé de manobras e freadas bruscas, vi algo que me cortou a alma: homens, mulheres e crianças recolhendo água das poças que se formavam nesses buracos. Água turva, com cor, cheiro e sabor, insalubre. A vida, naquele momento, parecia uma ironia cruel: enquanto a chuva trazia esperança, os buracos transformavam-na em desespero.
Como chegamos a este ponto? Como permitimos que o caminho principal que liga o país se tornasse uma fonte de água para quem não tem mais onde recorrer?
A cada paragem, novas cenas de um filme de tristeza. Assim que o autocarro reduzia a velocidade ou parava, crianças surgiam do nada. Roupas rasgadas, pés descalços, mãos estendidas. “Boisse me dá garrafas!”, gritavam. E quando uma garrafa era lançada, iniciava-se uma corrida feroz. Vários corpos frágeis a disputar um pedaço de plástico que, para nós, nada vale.
Mas não eram só garrafas. Ao longo do caminho, braços pequenos estendiam-se para o autocarro em movimento. “Peço dinheiro, boisse tenho fome”, ecoavam as vozes infantis. Em outra paragem, vi uma mãe cega, aliás, várias, com um bebé ao colo. Uma criança, talvez com sete anos, guiava-a. Os três, unidos pela necessidade, mendigavam aos passageiros que desciam para esticar as pernas ou usar as casas de banho.
E ali, diante dessas imagens, perguntei-me: onde está o futuro dessas crianças? Será que elas sabem que há deputados que, ao cessar funções, receberão subsídios de reintegração de mais de 8 milhões de meticais? Será que compreendem o significado desses números, enquanto disputam uma garrafa vazia ou uma migalha de pão?
Um país de contradições profundas
Esta estrada, que deveria unir o Norte, centro e Maputo, une também as extremidades da nossa desigualdade. No asfalto esburacado, vejo um povo que sobrevive. Nos salões do poder, há um outro Moçambique, onde políticos viajam em carros de luxo, helicópteros e jatos cercados por motoristas e seguranças, protegidos da realidade.
Os mesmos deputados que recebem salários exorbitantes e subsídios milionários passam por essa estrada? Será que sentem o impacto dos buracos nos seus corpos? Será que vêm as crianças que pedem garrafas? Será que sabem que há pessoas a recolher água suja das poças que esses buracos formam?
E a pergunta que não consigo calar: como é possível que milhões sejam destinados ao conforto de poucos, enquanto a maioria vive em condições tão degradantes? Como justificamos um país onde a estrada principal é tão precária que se torna uma metáfora viva do abandono?
Uma viagem que não deveria existir
Enquanto escrevo estas palavras, sentado em Maputo, não consigo esquecer as imagens que me acompanham. Cada buraco que vi na estrada parece ter aberto um outro na minha alma. E cada rosto de criança que pedia ajuda ao longo do caminho é uma lembrança dolorosa de que o nosso país está doente.
E então pergunto-me: até quando? Até quando seremos uma nação onde as crianças correm atrás de plástico e os políticos correm atrás de privilégios? Até quando aceitaremos que a estrada que deveria ser um símbolo de progresso se torne um cemitério de esperanças?
A EN1 não é apenas uma via. É um reflexo de quem somos como país. É a linha que conecta a nossa pobreza à nossa riqueza, o nosso abandono ao nosso privilégio. E enquanto ela continuar assim, esburacada, abandonada, palco de miséria, continuaremos a ser um país dividido entre aqueles que têm tudo e aqueles que não têm nada.
A dor de ser moçambicano
Cheguei a Maputo com a certeza de que algo precisa mudar. Não sei se é a estrada, os políticos ou nós mesmos. Talvez seja tudo. Talvez a mudança comece quando olharmos para a EN1 e não virmos apenas uma estrada, mas um retrato do que precisamos superar.
E agora, enquanto fecho os olhos e relembro a viagem, não consigo esquecer os rostos, os buracos, a água suja, as crianças descalças. Este texto é uma tentativa de aliviar a dor, mas sei que ela não vai embora tão cedo. Porque ser moçambicano, hoje, é carregar no coração a tristeza de uma estrada que nos une, mas que também nos separa.