Por: Manuel Ambrósio
Hoje, em virtude destas manifestações e vandalizações, entendo perfeitamente porquê os meus pais me ensinaram essas “coisas”.
Garoto que era, não entendia o quê que aqueles meus tios biológicos estavam a tratar, pronunciando aqueles nomes com o meu pai. Quando os visse reunidos, pensei que estivessem a tratar de assuntos da associação da nossa família que eles haviam criado. Mais tarde, bem-dito, recentemente, é que vim a saber que se tratava nada mais, nada menos de uma das muitas células clandestinas, precursora dos movimentos de libertação e da FRELIMO. Estes meus tios já se reuniam desde os finais dos anos 1950, alguns anos antes de eu nascer e da fundação da FRELIMO.
Já em 1974, o meu pai continuava activo, na clandestinidade, ajudando a FRELIMO, na companhia destes meus tios biológicos. Muitos dos nomes que pronunciavam não cheguei a conhecer, com a excepção do Pastor Zedequias Manganhela, que vinha à nossa casa visitar o seu filho que, depois de ter sido desvinculado da tropa colonial, alugou parte da nossa casa que a minha mãe havia decidido arrendar para ajudar a suportar as despesas pela criação dos seus cinco filhos menores, uma vez que o marido, meu pai neste caso, estava preso pela PIDE, por ser um irreverente “objector de consciência”, por ter-se recusado a juntar-se ao exército colonial, para “não matar os seus próprios irmãos“.
Cresci ouvindo política, num ambiente familiar altamente politizado. Por conta disso, fui arrastado pelo meu pai para o Campo de Xipamanine, em 1974, onde vi Máximo Dias e outros “reaccionários” cujos nomes não me lembro, numa aparição pública perante uma grande multidão. Confesso que não entendia de que se tratava.
Nesse mesmo ano, assisti as primeiras manifestações públicas na vida. Foram destruídas lojas de colonos brancos que o povo entendia que discriminavam e humilhavam os pretos. Me lembro perfeitamente como os meus tios e outros destruíram a casa do Velho Mahlathini, que era membro da Assembleia Nacional Portuguesa. Possuía uma “majestosa” casa de alvenaria, pintada de azul-claro (é assim como chamávamos as cores naquele tempo), e tinha uma garagem de carros perto da estrada. Até os anos 1990, ainda eram visíveis os escombros dessa casa.
Nos mesmos incidentes, houve a vandalização das lojas dos brancos e monhés lá no Xipamanine. A convite de alguns vizinhos, o meu pai disse “Não” às vandalizações pois ele entendia que, tratando-se de um período de transição, muitos dos negócios e infraestruturas que eram destruídas seriam necessárias no pós-independência. É verdade que isso era contra a nossa vontade, pois nós, miúdos que éramos, não tínhamos o verdadeiro alcance do momento e dos actos que eram praticados. Me lembro como um amigo, um pouco mais velho, havia conseguido um cesto cheio de roupas novas, de onde retirou um par de peúgas que me ofereceu. Guardei as peúgas como lembrança, até os finais dos anos 1980.
Assisti à proclamação da Independência Nacional no Estádio Salazar, hoje Estádio da Machava, e ao discurso das nacionalizações ali onde é hoje a Praça dos Heróis. Vi os Grupos Dinamizadores, Grupos de Vigilância, Milicianos e toda a Guerra Civil que destruiu o país. Assistia à TVE (Televisão Experimental de Moçambique) no Círculo do Bairro.
Por conta de algumas decisões políticas contextualmente pouco acertadas, cresci formando “bichas” para comprar pão, carne, arroz e tudo que fosse bem de primeira necessidade. Até o leite e iogurte da CCG (Cooperativa de Criadores de Gado), ali na baixa, que tanto tomava com gosto quando miúdo, acompanhado de torradas, já era preciso marcar a bicha para comprar. As sandes e torradas do Café Scala e Café Continental já eram coisas do passado. Os famosos rissóis do Café Estoril haviam desaparecido. Minha mãe já não me levava para Marta da Cruz & Tavares, John Orr ‘se Confecções “Ele & Ela” para comprar roupas, no final do ano, porque as lojas já andavam vazias. Até os supermercados Mann & Khai (MK), Monte & Giro e Dlhembula (este vi a ser construído nos meados da década 70) já não tinham produtos a abarrotar suas prateleiras. Vi mesas cheias de copos de cerveja “2M” e “Impala” e alguns petiscos servidos, mas mesas dos bares. Vi a minha vizinha a ser hospitalizada por conta da ingestão de uma dose alta de uma aguardente de toranja de fabrico nacional chamado “Xidiba Ndoda”. Vi o lançamento do primeiro, senão o único, aparelho de rádio transístor de marca “Xirico” e da primeira televisão privada RTK (Rádio Televisão Klint).
Trago estas memórias, recentes para uns, distantes para outros, e “inexistentes” para muitos dos jovens da geração de 1990 que estiveram envolvidos nas manifestações e vandalizações de bens públicos e privados que estão a acontecer um pouco por todo o país, para entenderem a caminhada deste sofrido povo moçambicano.
Nos ciclos da história, nada é novo, tudo se repete. É verdade! Mas, quais são as lições que são tiradas pela geração protagonista da história, e como é que essas lições são usadas pera informar correctamente os processos futuros? O quê que esta geração protagonista deste evento aprendeu com toda esta destruição? Colocando a pergunta de outra maneira: o quê que a minha geração é a do meu pai aprendeu com os eventos de 1974 para que tivesse informado esta geração dos nossos filhos a evitar repetir os erros que foram cometidos nestas manifestações?
Hoje, sábado, saí para dar uma voltinha e tomar conta dos estragos. Fiquei estarrecido! Recuamos para 1975 como povo. Não aprendemos nada! Caiem-me lágrimas ter de voltar a ficar na bicha para comprar pão na Padaria Lafões, 50 anos depois. Dói-me muito porque hoje já não tenho 15 anos, mas sim quase 70 anos. Onde é que nossa educação falhou como nação? Estou na bicha de pão com o meu neto, e me pergunto: como é que me permiti a deixar o meu neto ver aquilo que nem o meu filho viu? O meu filho nunca esteve na bicha de pão na vida. Nunca viu destruição dentro da Cidade de Maputo. Mesmo a RENAMO não causou este tipo de destruição. O quê que falhou em nós? O quê que falhou nos nossos filhos? O quê que falhou nos nossos pais?
A minha esperança é que as quatro gerações políticas ainda estão vivas. A geração dos Chissano, Guebuza, Pachinuapa, Matsinhe, Chipande, Nihia, Gundana, Kida, Tazama, Tembe, Machel que nasceu a Luísa Diogo, Filipe Nyusi, Castigo Lança, Aires Ali, Alberto Vaquina, Margarida Talapa, que por sua vez nasceram os Venâncio, Chapo, Muxanga, Macuácua, Soares, Chalaua e tantos outros que também já têm filhos precisam de se encontrar para sonhar um Moçambique que não venha a passar por esta vergonheira. Esta é a pior vergonha que eu já vi nestas minhas seis décadas de vida.
Vamos juntos reflectir sobre os nossos desafios, e educar correctamente as gerações vindouras para que tudo o que assistimos não venha mais a acontecer no nosso país. É preciso que os jovens sejam ensinados a saber de onde é que a gente vem e para onde é que a gente pretende chegar, e como é que elas podem fazer parte, de forma construtiva, nessa jornada.
Sou pelas manifestações e contra as vandalizações! Sou pelo progresso e contra o retrocesso.