Enquanto as ruas se enchiam de gritos e correria, ele viu a oportunidade: não de mudar de vida, mas de encher a barriga. A fome, essa velha amiga, não perdoa. Não dá tempo para discursos ou revoluções; ela exige acção. E foi com essa lógica pragmática que ele se juntou à multidão que invadia lojas e supermercados. Afinal, por que questionar as correntes quando se pode decorá-las com um saco de arroz e algumas latas de conserva?
Entrou na loja como quem entra num buffet aberto. Cada prateleira era uma mesa farta, e cada vidro quebrado era um convite para servir-se à vontade. Ele não buscava luxo, claro não era tolo de querer um televisor de última geração ou uma sapatilha importada. Isso era para os outros, os que ainda tinham energia para sonhar com uma vida que nunca seria deles. Ele queria comida, a solução imediata para o problema que o consumia dia após dia.
E ali estava ele, com as mãos cheias e o coração vazio, acreditando por um breve instante que era livre. Livre porque, naquele momento, ninguém o impedia de pegar o que quisesse. Mas liberdade de verdade não vem em latas de conserva, e ele logo percebeu isso. O peso do arroz em suas mãos era leve comparado às correntes invisíveis que ainda o prendiam.
Quando voltou para casa, o tecto enferrujado continuava lá, o chão de terra ainda sujava os pés, e a miséria ria na sua cara. Ele sentou-se e olhou para o prémio do dia, perguntando-se se aquilo era tudo que a liberdade tinha a oferecer. Porque, no fundo, ele sabia: aquilo não era liberdade, era sobrevivência mascarada.
Mas quem pode culpá-lo? Não é ele que construiu um sistema onde alguns banqueteiam enquanto outros brigam por migalhas. Não é ele que prometeu igualdade e entregou correntes. E, enquanto o verdadeiro voo continuar sendo privilégio de poucos, ele seguirá no chão, sonhando com asas enquanto se contenta com arroz. Afinal, quem precisa de liberdade quando se tem uma barriga cheia e uma alma vazia? (Dedos D’eus)