Em termos geográficos, os contos deste livro da Lília, situam-se entre Lourenço Marques (actual Maputo, capital de Moçambique) e Ilha de Moçambique, mas é neste último onde os maiores acontecimentos têm lugar, como por exemplo, o conto Ninguém matou Suhura, que retrata a brutalidade do império colonial em relação as pessoas de cor (negros e indianos).
Se já tínhamos no conto o Baile da Celina, que não chega a ter lugar por ser negra, por orientação do Reitor, pois não era bom para a classe alta andar misturada com gente de cor, mesmo depois de todos os esforços da mãe da Celina, até de confeccionar pessoalmente o vestido da filha, no conto Ninguém matou Suhura, a Lília expõe o que de mais vil o império colonial português fazia, tratar as mulheres negras como objectos sexuais, sem direito a negação e mínima consideração. Infelizmente aquela forma de olhar para as mulheres negras, não terminou com a queda do colonialismo, visto que é possível ver, ainda hoje, no meio de nós, inúmeros casos de instrumentalização da mulher, umas por vontade própria, movidas por sede de poder, enriquecimento fácil e outras por chantagens, as que se negam a rebaixar-se a troco de Ministério, Direcção, Departamento ou Sector. Publicamente vende-se a narrativa de paridade e igualdade de género, mesmo cientes de como tratamos o outro género (as mulheres) no nosso seio.
O que me chamou atenção neste conto é a figura do sipaio Abdulrazaque, que era o responsável por recolher as meninas que o Administrador pretendesse abusar delas, sem olhar para a dor que infligia não só nelas, mas também nas das suas famílias. Suhura que já era órfã de pai e mãe, terminou morta. A sua avó teve que, mais uma vez, suportar a dor de enterrar a neta depois da filha.
A dor da avó de Suhura remete-nos a dor que as nossas mães, esposas, familiares e amigos sentem, quando nos vão enterrar depois de sermos crivados de balas pelos novos sipaios, pelo simples facto de exigir que sejamos tratados com dignidade e respeito. Será a dignidade que exigimos maior do que os recursos, que nos roubam dia após dia? Certamente que não. Mas para além de péssimos alunos, sempre tiveram também péssimos professores. Das parcas referências suas, extraíram que governar é expropriar, roubar e humilhar os governados. Fazer destes últimos, nadas; seres sem dignidade e incapazes de pensar por si. Por isso, as escolas que são para todos hoje, não ensinam a ninguém. É tudo para fazer de contas. O mais importante é lutar pelo partido e não pelo Estado. Não me espanterei se num futuro breve começarmos a ensinar nas nossas escolas como se enchem urnas e desviam-se votos para que de forma asfixiante sempre governemos.
Assim como o sipaio Abdulrazaque era negro, irmão de mesma cor da pele que a nossa, os sipaios de hoje também são negros, talvez mais evoluídos que os de ontem, pois alguns deles, estudaram em melhores universidades e falam um português requintado, até mesmo outras línguas estrangeiras e provavelmente não saibam falar as nossas. Usam Facebook, WhatsApp e têm bibliotecas enormes, quer virtuais quer físicas. O que mudou de cor foi o colono, que deixou de ser branco e passou a ser negro da mesma cor da pele que a nossa. Talvez um pouco mais cuidado pelos recursos a mais que conseguiu extorquir de nós, o povo. Para legitimar a sua actuação, fez alianças com outros colonos negros, que minuto a minuto palmilham as terras de Cabo Delgado e expulsam os nativos, como se estivessem a jogar para lixeira uma manga podre.
O que alegrava o sipaio Abdulrazaque ontem não era estar no poder, para talvez implementar as ideias que não tinha sobre o seu povo, mas estar na varanda do palácio enquanto o Administrador almoçava com a sua família; sentir o cheiro da comida e rezar bastante para que sobre, de modo que consiga apanhar algumas migalhas para si e sua família. Assim são os sipaios de hoje, escolarizados e instruídos. Não estão preocupados com o poder ou o desgoverno de todo um Estado, mas estar próximos dos que desgovernam para sentir o cheiro do poder. O mais importante para eles são as migalhas que lhes chegam nem que para isso tenham de entregar os seus irmãos aos lobos. De uma coisa tenhamos certeza, os sipaios de hoje são muito mais perigosos que os sipaios de ontem, não pelo nível de ambição, porém pelo nível de vassalagem. Não é em vão que olham para isto como uma psicose colectiva, ignorando as várias psicoses individuais dos que desgovernam o Estado.
Por fim, gostaria de sugerir que (re)lessem o livro, que pode ser adquirido na Livraria Khapes, LDA em Chimoio ou nas várias livrarias de Maputo, ou ainda contactar a Gala-Gala Edições.
Timóteo Papel
Chimoio, 18-12-2024