Por José Guambe – [email protected]
A paisagem está adornada de escuridão, do negro cor de pneu. Tomei um susto, mas logo me recompôs. Era apenas a assombração da minha infância, a única vez que testemunhei uma floresta em chamas. Naquela ocasião teria apreendido que quando há incêndio na floresta, o camaleão pode ser o mais rápido dos animais. Mas na cidade não há florestas. Há jardins, alguns em extinção, mas não há florestas, se não mugorodes, edifícios abandonados, em ruínas, que comumente são albergue dos marginalizados, das vítimas dos crimes sociais, os sem teto, os incautos. Poderia ser um incêndio em armazém ou num ministério qualquer, como resultado do famigerado curto-circuito. Aqui nunca existe fogo posto, negligência, ou nenhum outro crime resultante do descaso quando o assunto são incêndios. Todas as investigações terminam com a “certeira” explicação: curto-circuito. Também foi assim no caso do criminoso incêndio que deflagrou os escritórios do Jornal Canal de Moçambique, mesmo com todas as evidências a apontar para o contrário.
Pensava e tentava conciliar todos estes eventos, quando o meu telefone rompeu com o silêncio. Confesso que fui tomado por um susto maior que o primeiro. Não era para menos, a ligação era do meu tio, Boaventura Burruane, ou simplesmente Ti-Burruane. Contam-se as vezes que recebi ligações do meu tio. Na verdade, foram cinco chamadas. Em todas as vezes, as comunicações tinham a mesma finalidade. Até pareciam mesmos comunicados. O denominador comum era a notificação em torno do falecimento de algum parente nosso, dos mais próximos aos mais distantes. Na ocasião ocorreu-me pensar nos enfermos da família e pensava, quem seria desta vez. Talvez a tia Ildane, que já andava doente a algum tempo. Seria aquela a comunicação de que a velha Ildane interrompeu o seu longo percurso existencial?
Depois de um longo período de hesitação, resolvi tomar coragem e atender à ligação do Ti-Burruane. Depois de uma prolongada e contextualizada saudação, como é costume na nossa cultura, entendi que aquela ligação não seria comunicação de nenhum infortúnio familiar, mas seria pela primeira vez uma ligação de um velho sedento de encontrar uma disposição capaz de ouvir com paciência as suas lucubrações. O país está em chamas meu filho – ham, por isso que os céus de todas cidades de Moçambique estão pintados de preto, cor de pneu.
Há feridas antigas, que caracterizam as contradições da marcha de Moçambique ao longo dos anos. Não há correspondência entre a «história-acontecimento» e da «história-conhecimento». A «história-conhecimento» é produto dos vencedores. No nosso caso, foi feita por aqueles que lutaram pela independência. Aqueles que antes eram chamados de terroristas pelo colonialismo português, quando alcançaram o poder não tardaram em dominar ou controlar os medias e todas plataformas de comunicação e informação e contaram a história na versão que lhes convinha enquanto correspondente com aos seus interesses.
Ainda pensava no que pretendia dizer Ti-Burruane com essas palavras quando o velhote, continuando, disse o seguinte: meu filho o que vivemos neste ano, o sentimento de revolta que se evidencia nas manifestações é consequência do facto de, enquanto moçambicanos e moçambicanas, termos questões históricas mal resolvidas. Faltou-nos a coragem de sentar à sombra de uma árvore e discutir a nossa moçambicanidade. Há uma consciência que foi sendo implantada, que favoreceu a fragmentação dos moçambicanos. Esta criou a ideia de que existem os moçambicanos e moçambicanas de gema e os que não são de gema, os da primeira e os da segunda classe. E foi em função disso que um grupo chamou a si o direito de tomar e repartir as riquezas do país. Os que manifestaram um pensamento diferente foram chamados de reacionários e mais tarde foram convertidos em «bandidos armados».
As passeatas ou digressões pelo território nacional da assim conhecida Chama da Unidade Nacional revelaram ser uma farsa. Pois, não foram capazes de dissipar a escuridão da fome e miséria que graça nos corações da maioria dos moçambicanos, apenas alimentava o fogo do ódio por aqueles que sempre se mantiveram indiferentes em relação ao seu sofrimento do povo, quando era capazes de gastar rios de dinheiro para que uma tocha pudesse circular pelos distritos, localidades e postos administrativos do país em contraposição com a elaboração de políticas públicas que fossem favoráveis a vida dos cidadãos.
Enquanto não existir políticas claras visando a distribuição dos recursos de que o pais dispõe, a paz será uma estrela que brilha no horizonte, cujo alcance é imanente. Até pode estar próxima, mas será inalcançável. Não se pode pretender a estabilidade dum país em que uma minoria ostenta uma vida faustosa, caros de luxos, viagens com direito a hospedagem nos melhores e mais carros hotéis, quando a maioria, o povo, não consegue um naco de pão para satisfazer a mais básica das necessidades. Os recursos existentes na terra pertencem a todos os moçambicanos e moçambicanas, por isso, é necessário que estejam ao serviço de todos.
Foram estas palavras de Ti-Burruane. O discurso mostrava sinais de que ainda caminhava para o aprofundamento, se a conversa não tivesse sido interrompida pelo corte da internet e limitação das comunicações. Que o velhote ligue mais vezes, pois há um ouvido disponível a ouvir as suas reflexões. Que o próximo contacto nos encontre ainda como sujeito de direitos à informação e a livre expressão.