De Aviator a Morte: O Falso Jocus e a Mors

Evoco, com um saudosismo profundo, as memórias das brincadeiras de ntxuva, dos brinquedos de ferro (os célebres carrinhos), e do futebol nas competições escolares. Em suma, recordo os jocus, que essencialmente implicavam uma dimensão lúdica, dedivertimento e de convívio, onde o principal escopo era o entretenimento, a recreação e, inevitavelmente, a socialização.

Sob uma perspectiva histórica, os jogos sempre cumpriram diversas funções, desde o lazer até o desenvolvimento cognitivo e social. Os jogos de tabuleiro e as competições atléticas na Grécia Antiga, por exemplo (e aqui poderíamos também aludir ao Egito Antigo, à África do Sul com o Mancala ou ao Quênia com o Sungura Mjanja), constituíam formas de explorar o intelecto, a estratégia e a cooperação. Estes jogos, para além do seu caráter lúdico, integravam-se num contexto cultural e ritual, como nas competições olímpicas ou nos jogos religiosos de civilizações ancestrais, a exemplo do “jogo de bola” mesoamericano, do Dambe e da Lutte Traditionnelle na Nigéria, ou ainda do Pelota no Chade, semelhante aos nossos chingufus.

Ademais, a cultura humana emerge do espírito do jogo. O jogo, como actividade essencialmente livre e criativa, constitui um campo fundamental de expressão humana [Johan Huizinga, Homo Ludens (1938)]. Para este filósofo holandês, o jogo é uma atividade voluntária que se desenrola dentro de limites espaciais e temporais, respeitando regras pré-definidas e envolvendo profundamente os seus participantes. Na substância, segundo Huizinga, o jogo vai muito além do mero entretenimento, servindo de base para a formação de cultura, para os rituais, a arte e até os sistemas jurídicos.

No entanto, se por um lado os jogos são um espaço de liberdade e prazer [Huizinga, Homo Ludens], por outro, na realidade hodierna, eles são também um campo de tensão e de competição, onde despontam desigualdades sociais, bem como a possibilidade de manipulação e exploração. O jogo, frequentemente, transporta consigo uma ambiguidade moral, sobretudo quando se trata de jogos de azar. Roger Caillois, em Os Jogos e os Homens (1958), refinou a categorização dos jogos, distinguindo entre competição (agon), jogos de sorte (alea), mímica (mimicry) e vertigem (ilinx). Ele reflete sobre como a sociedade (contemporânea) lida com o acaso e a sorte nos jogos de azar, onde as fronteiras entre o lazer e o perigo se tornam indistintas. Para Caillois, a aleatoriedade inerente aos jogos de azar pode representar tanto uma ruptura com a ordem racional quanto uma dependência destrutiva. É precisamente nesta dependência destrutiva que vejo o reflexo dos jogos do nosso tempo.

Refiro-me, concretamente, aos chamados Aviator, Crowd 1 e Bet. O meu olhar (crítico) funda-se na constatação de que um número preocupante de jovens, sobretudo no nosso contexto nacional, tem sucumbido ao suicídio — em particular agentes da Lei e Ordem, como os nossos policiais, cujos casos são amplamente divulgados nos meios de comunicação. Acredito, contudo, que esta tragédia se estenda a um número muito mais elevado de jovens, cuja morte, longe de ser mediática, permanece anônima.

Ao reflectir sobre este quadro desolador, não posso deixar de considerar a economia capitalista em que estamos imersos — a dolarcracia da segunda república [Ngoenha]. Este sistema, para além de complexo, é vil, opressor e beneficia sobretudo a burguesia. No nosso contexto, refiro-me aos Porgueses ([aqueles com] mentalidade pobre com veleidades burguesas [Ngoenha]), os “cipaios” (modernos), que servem os interesses do (grande) capital internacional.

A introdução do dinheiro nos jogos de azar, como nas apostas (ditas) desportivas, e a rápida disseminação de plataformas online, como bets e Aviator, alteraram a essência do jogo, que deixou de ser uma actividade lúdica (divertimento) para se converter numa forma de exploração econômica.

Esses jogos, como o Aviator e (a Tia) Bet como são comumente chamados no seio juvenil, transformam o acto lúdico num mecanismo de lucro, cujas consequências devastadoras atingem principalmente os jovens pobres (sem educação formal muito bem elaborada) e vulneráveis — que, como sublinho, constituem a maioria no nosso país. Marx e outros pensadores críticos do capitalismo, como Engels, Gramsci e Marcuse, abordam o conceito de alienação, que aqui se pode aplicar ao vício em jogos. O sistema capitalista cria uma falsa sensação de liberdade, oferecendo a ilusão de enriquecimento rápido através das apostas, ao mesmo tempo que gera uma dependência econômica e psicológica, que muitas vezes culmina não apenas no empobrecimento, mas também no suicídio — a morte.

Outrossim, o sociólogo Zygmunt Bauman, em Modernidade Líquida (1999), argumenta que o capitalismo contemporâneo promove a efemeridade e o consumo imediato. Os jogos como Aviator e (Tia) Bet inserem-se perfeitamente neste modelo, onde o prazer momentâneo, o risco e a recompensa são consumidos instantaneamente.

Neste cenário, os Crowd One´s (jogos de azar), entre outros, são expressões do capitalismo financeiro, que se alimenta das esperanças e ilusões dos indivíduos. O jogo, assim, deixa de ser uma simples atividade recreativa, como os nossos chingufus, ou como defendido por Huizinga, para se transformar numa indústria changuista (de changs/multimilionária) que explora as vulnerabilidades humanas. Isso é evidente na forma como as (ditas) grandes empresas de apostas utilizam algoritmos sofisticados para maximizar os seus lucros, criando uma constante sensação de possibilidade, enquanto aprisionam os jogadores em ciclos de perda.

O impacto é particularmente severo entre os jovens de classes socioeconômicas mais baixas — que, como reitero, constituem a maioria da população nacional, incluindo os nossos policiais — que veem nesses jogos uma saída ilusória da pobreza. Filósofos críticos do capitalismo, como Guy Debord, em A Sociedade do Espectáculo, discutem a alienação do indivíduo na sociedade (moderna), onde a mercantilização das experiências humanas atinge até mesmo o domínio do lazer e da recreação.

Hoje, ao observar esta realidade sombria, e após uma conversa recente com Chiqueremo, (amigo mais velho) que de certo modo me inspirou a escrever estas notas, percebo que já não temos jocus (jogo) no verdadeiro sentido da palavra. O que temos é mors (morte). Pergunto: será que precisamos de mais causas de morte? Posto que já temos muitas. Não teremos já assistido o suficiente? Consultando rapidamente a internet, é fácil encontrar a proliferação desses sites no nosso contexto nacional, devidamente autorizados chapoamente pelos donos da madeira/carpinteiro, quer dizer, o (dito) Estado, enquanto os mecanismos para denunciar esses abusos permanecem inoperantes. Infelizmente, estamos a matar a seiva da nação [Samora], e consequentemente a falhar enquanto nação.

Phantima Vilankulu Khosa

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