A Polícia está protegendo quem? A democracia ou quem tem medo dela?

No crepúsculo de 03 de Outubro, enquanto o sol já começava a esconder-se com vergonha do que se passava, a cidade de Manica testemunhou um espectáculo tragicómico, uma obra digna de um teatro grego com pitadas de "comédia nacional".

Por: Zacarias Nguenha

Venâncio Mondlane, o candidato que resolveu fazer campanha com o pé na estrada e não nos tapetes luxuosos dos palácios, decidiu visitar a cidade e resgatar o que resta da dignidade popular, um sonho que parece cada vez mais esquecido. A multidão, movida pelo entusiasmo — e talvez pela curiosidade de ver um político que não se acovarda — seguia-o, enquanto a Polícia da República de Moçambique, que devia zelar pela ordem e pelo bem de todos, decidia o contrário: fechava as ruas e deixava claro que, na sua versão de “Ordem”, apenas uma parte da população é digna de passar.

A rua foi bloqueada. Uma cortina de homens fardados, armas em punho, como se estivessem ali para enfrentar uma invasão alienígena e não um grupo de cidadãos com bandeiras, música e esperança. Seria cómico, se não fosse trágico. A polícia, que jurou pela Constituição proteger cada cidadão, demonstrava que o juramento, afinal, é só para ocasiões especiais — ou talvez apenas para as câmaras. Rousseau, se pudesse ver aquela cena, daria uma risada amarga: “Contrato social? Que contrato é esse que só vale para um lado?”, sussurraria ele, enquanto seus manuscritos se viravam no túmulo, envergonhados.

Eis que então, à sombra do absurdo, surge o herói da história. Não, não é o comandante, que se orgulhava de sua barricada de homens inexpressivos. É Venâncio Mondlane, que ao som de tiros — sim, porque o drama precisava de uma trilha sonora mais intensa — levanta a cabeça e se dirige ao comandante. “Dispare contra mim”, disse ele, sem perder a firmeza. E o que fez o comandante? Pois bem, aí está a grande piada: ele, que tanto bradou ordens e se comportou como defensor implacável, recuou. A multidão, tomada pelo espírito de luta, começou a gritar: “Venâncio, Venâncio!”, recordando-se de um velho filme em que, num ringue, os espectadores urravam “Boyka, Boyka!”. O clima era de um espectáculo em que o herói não recuava, mas enfrentava a adversidade com bravura. Nietzsche, lá de cima, com seu eterno sarcasmo, apontaria e diria: “Ora, a moral dos fracos se revela nas horas mais inconvenientes, não é mesmo?” E ali estavam: um comandante e seus soldados armados, envergonhados e sem saber onde enfiar suas armas, enquanto um homem desarmado, acompanhado de uma multidão, mostrava que a força, afinal, não se encontra no dedo que aperta o gatilho, mas na coragem de encarar o absurdo.

No meio do caos, a música tomou conta: “Estamos a vir, é melhor fugir!”. Uma ironia que a multidão entendeu imediatamente. Fugir, quem? Fugir do quê? Quem deveria estar fugindo não eram eles, os cidadãos com bandeiras e vozes, mas o próprio Estado, que ali se desnudava, revelando seu medo. Venâncio continuava, e a festa também. A rua bloqueada tornou-se palco de resistência, e a multidão dançava como se o asfalto, agora, fosse solo sagrado. Parecia que, ao invés de tiros, lançavam-se confetes.

E o que queria a Polícia da República com tudo aquilo? Mostrar força? Controlar a multidão? Dizer que ali mandavam eles? No fim, a mensagem foi outra: de que uma multidão com música e coragem é mais poderosa do que um pelotão de soldados desorientados. Stuart Mill, com sua visão sobre a liberdade, certamente aplaudiria a cena. Locke, do seu canto filosófico, talvez visse ali o embrião de uma revolução, onde o poder realmente se descentraliza e retorna àqueles de quem, por direito natural, ele pertence.

O grande dilema — que diria Dostoiévski, se pudesse comentar — é que o poder, com toda sua opulência e toda sua capacidade de reprimir, sempre se esquece que há algo que não pode ser esmagado: a ideia. E a ideia que tomou as ruas de Manica era simples: o medo mudou de lado. A música dizia para fugir, e a fuga, ironicamente, não era do povo. O comandante, com suas ordens e sua postura de autoridade, viu-se sem poder frente a um homem que se recusou a se ajoelhar.

E assim continuaram, enquanto os soldados recuavam, os que dançavam avançavam. As ruas que o Estado tentara fechar tornaram-se o cenário perfeito para uma peça de resistência popular, em que o protagonista não precisava de armas, apenas de voz, música e coragem. No fim, talvez tenha ficado claro que não há bala capaz de silenciar uma vontade genuína.

Afinal, no teatro da política, há aqueles que interpretam papéis com armas e fardas, e há aqueles que, sem script, apenas vivem o que acreditam. Venâncio Mondlane não precisou de aplausos. O verdadeiro aplauso veio no ritmo da multidão que se recusou a parar de dançar. As ruas podem ser fechadas, mas a vontade — essa, meus caros — é livre.

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