A Frelimo obteve uma vitória famosa há 50 anos, derrotando um exército português muito maior. Mas a independência durou pouco e Moçambique voltou a ser uma colónia. Desta vez, não é uma colónia de um país, mas do FMI e das empresas internacionais. Mas não é diferente.
O FMI impôs o neoliberalismo e o mercado livre, onde tudo está à venda. E a elite da Frelimo, usando o seu controlo da terra, das minas e dos contractos, tornou-se – agente do novo colonialismo. O modelo é Raimundo Pachinuapa, general na guerra da independência e, até há pouco tempo, membro da Comissão Política da Frelimo. Ao ver que os garimpeiros tinham encontrado rubis no centro de Cabo Delgado, apoderou-se das terras e trouxe uma empresa britânica, a Gemfields, para fazer o trabalho de extracção e comercialização. Pachinuapa tornou-se milionário, mas os principais lucros saem do país, para a Gemfields, tal como o FMI pretendia. São criados alguns postos de trabalho no sector mineiro, mas, no fim, Moçambique ficará apenas com buracos no chão.
Mais uma vez, na semana passada, o Ministro dos Recursos Minerais e Energia, Carlos Zacarias, disse que Moçambique deve usar os seus recursos minerais para impulsionar o desenvolvimento económico. Mas como? Pachinuapa e os seus rubis são a excepção. Há poucos milionários e nenhum desenvolvimento local. E não há ganhos para o moçambicano comum. Cabo Delgado, rico em minerais, continua pobre. É o que se chama a maldição dos recursos naturais. Vejo quatro razões para este desastre.
Primeiro, a elite aceitou a ideia do FMI de que enriquecer é fácil; Pachinuapa é o seu modelo. Assim, os filhos das famílias de elite agarram em terras e concessões mineiras e ficam à espera. Alguns fizeram, de facto, acordos com mineiros chineses, por exemplo, para a exploração de ouro, mas sem lucros do tamanho de um rubi.
Em segundo lugar, os moçambicanos são baratos. O antigo Ministro dos Transportes, Paulo Zucula, e o antigo presidente das Linhas Aéreas de Moçambique (LAM), José Viegas, compraram dois aviões Embraer 190 para a LAM por 64 milhões de dólares. Receberam um suborno de 800.000 dólares, mas, quando todos os subornos da Embraer foram revelados num processo judicial nos EUA, verificou-se que, por 1% do custo dos aviões, Moçambique foi o país mais barato de todos os subornos da Embraer.
E o que vemos nos vários negócios de gás e mineração em Cabo Delgado? É que os moçambicanos não ganham muito dinheiro porque se contentam com contractos de serviços – hotéis, aluguer de carros, transportes, materiais para construção e importação da África do Sul. O poder da Frelimo é simplesmente usado para garantir que as empresas da elite ganhem contractos a preços ligeiramente inflacionados.
O DESENVOLVIMENTO É POSSÍVEL, MAS IGNORADO
Em terceiro lugar, a elite moçambicana não leva a sério as possibilidades de desenvolvimento. Tal como o ministro dos minerais, esperam que o desenvolvimento aconteça por magia.
No entanto, há exemplos do que poderia ser feito. O acordo original de gás feito com a Anadarko envolvia dar parte do gás físico directamente ao governo. Depois, o governo chegou a acordo com a maior empresa de fertilizantes do mundo, a Yara da Noruega, para produzir e distribuir fertilizantes em Moçambique. Isso teria transformado a agricultura camponesa. Mas, mais tarde, os funcionários do governo deixaram simplesmente cair o negócio, sem qualquer explicação ou protesto.
Mais recentemente, temos a grafite, que é importante para as baterias dos carros eléctricos. A grafite é utilizada nos ânodos da bateria e o processo de montagem é simples; poderia facilmente ter sido feito em Cabo Delgado. Mas os EUA estão a dar à empresa australiana Syrah um subsídio de 300 milhões de dólares para fazer a montagem em Louisiana e criar 319 empregos e contractos para 150 empresas locais. O FMI teria dito que um tal subsídio só é permitido nas potências colonizadoras e, não, nas zonas recolonizadas. No entanto, como existe uma verdadeira batalha pela grafite entre a China e os Estados Unidos, Moçambique poderia ter obrigado a empresa a produzir ânodos localmente. Mas os moçambicanos consideram-se satisfeitos por terem ganho pequenos contractos de fornecimento para as minas, em vez de criarem 319 postos de trabalho e mercados. Mais uma vez, contentam-se com muito pouco.
Há vinte anos estive em Angoche e foi prometido o desenvolvimento de um novo porto de pesca, com congeladores, etc. Teria criado emprego e desenvolvimento, mas nada aconteceu. Estamos novamente em tempo de eleições e o Presidente Filipe Nyusi esteve em Angoche a 26 de Julho para prometer o mesmo porto de pesca.
Em quarto lugar, poucas pessoas prestam atenção ao impacto da recolonização. Ninguém no topo da hierarquia se preocupa. No caso da dívida secreta de 2 mil milhões de dólares em Londres, o juiz Robin Knowles, na sua decisão há 10 dias, disse: “É impressionante notar que, em tudo o que ouvi e li, não consegui identificar um único funcionário sénior ou titular de cargo que, durante o período de 2011-2015, se tenha levantado em defesa de Moçambique, questionando ou testando o que estava ou poderia estar a acontecer.”
Li alguns dos primeiros documentos e, em minutos, vi que eram irreais. O acordo do atum dizia que Moçambique venderia o seu atum por um preço três vezes superior ao dos pescadores da vizinha Seychelles, e esse preço estava num site público da FAO.
E na ponta mais pequena, no negócio da LAM, a Embraer foi autorizada a aumentar o preço dos aviões em 1,4 milhões de dólares. Isto, não só, significa que foi a LAM, e não a Embraer, que pagou o suborno, mas também significa que a Embraer teve um lucro extra de 600.000 dólares só por ter dado um suborno.
Mas não são apenas empregos que não são criados. Milhares de mineiros e pescadores artesanais foram expulsos das suas terras ou perderam o acesso ao mar porque os projectos de mineração e gás em Cabo Delgado forçaram o reassentamento. Estas pessoas, não só, não ganharam nada, como estão em pior situação porque perderam os seus meios de subsistência. Por vezes, recebem casas mas não têm maneira de ganhar a vida.
O plano de desenvolvimento a 20 anos, aprovado pelo Conselho de Ministros em Junho, admite que a última década foi um desastre. “O crescimento económico abaixo do esperado resultou num menor investimento, num aumento do desemprego e numa redução da capacidade do governo para financiar programas sociais e infra-estruturas essenciais” na década de 2015-2023. O plano refere que 46% da população estava abaixo do limiar de pobreza de consumo em 2015, mas que este valor subiu para 65% em 2022; a desigualdade também aumentou. O plano revela ainda que 37% das crianças com menos de 5 anos sofrem actualmente de “desnutrição crónica”.
A GUERRA É A ÚNICA SOLUÇÃO?
Em Cabo Delgado, registou-se uma melhoria importante. O ensino primário foi alargado. Os jovens tinham quatro anos de escola primária, em comparação com os seus pais analfabetos. Acreditavam que estavam “educados” e já não tinham de se dedicar a uma agricultura árdua, apenas com uma enxada, ou à pesca, arrastando redes durante horas ao longo da praia, como os seus pais ainda fazem.
Alguns sentavam-se à beira da estrada a tentar vender algumas coisas enquanto os 4×4 das minas e do gás passavam a correr. E diziam que queriam uma pequena parte desses recursos, mas a resposta era não – não há empregos para jovens semi-alfabetizados com apenas quatro anos de escolaridade.
Cinquenta anos antes, os jovens de Cabo Delgado que enfrentavam o mesmo problema tinham formado a Frelimo e entrado em guerra contra o poder colonial. Em 2017, os jovens tomaram a mesma decisão e um pequeno grupo armado atacou e capturou a cidade portuária de Mocímboa da Praia. A cidade foi ocupada apenas por um dia e depois partiram, mas a guerra que iniciaram depressa se tornou numa insurreição popular. Os rebeldes de há 50 anos tinham-se tornado nos novos colonizadores, roubando as riquezas.
Os insurrectos ganharam o controlo de quatro distritos e das suas principais cidades. Era evidente que a maioria dos jovens combatentes só queria emprego e dinheiro. Naquela altura, alguns milhares de empregos teriam sido suficientes – criados pela indústria do gás ou através de estágios de aprendizagem de técnicas de construção, mas em qualquer dos casos com empregos garantidos. Mas os quadros superiores da Frelimo não viam isto como uma resposta e fingiam que a situação se devia a “forças externas”.
Em Junho de 2020, os insurgentes capturaram Mocímboa da Praia, a maior cidade perto das instalações de gás. Mais a norte fica Palma, uma cidade mais pequena perto das instalações de gás na península de Afungi. Palma era a base de todos os empreiteiros e subempreiteiros. Foi capturada e mantida durante uma semana em Abril de 2021. Os insurrectos atacaram cuidadosamente os edifícios governamentais, mas não os empreiteiros de gás. Depois de terem partido, a cidade foi ocupada pelo exército e pela polícia, que saquearam tudo, chegando mesmo a assaltar cofres de bancos. Depois disso, houve calma. O edifício do Hotel Amarula não foi danificado, mas foi despojado. Reabriu um ano depois, com o mesmo mobiliário comprado aos saqueadores do exército e da polícia “a um preço razoável”.
Em 26 de Abril de 2021, a TotalEnergies, a principal empresa de gás, declarou Força Maior e as obras pararam. Dois dias depois, o Presidente Filipe Nyusi esteve no Ruanda para falar com o Presidente Paul Kagame, que enviou 1.000 soldados ruandeses em Julho. O número subiu para 4.000, mas a Força Maior não foi levantada.
A pressão chegou em Outubro de 2021, quando o Banco Mundial, a UE, o BAD e o PNUD apresentaram uma proposta de Estratégia para a Resiliência e o Desenvolvimento no Norte (ERDIN) com promessas de 2,5 mil milhões de dólares. A proposta colocava uma ênfase substancial nas queixas locais – pobreza, desigualdade, marginalização e ausência de ganhos com os recursos locais – como uma das principais raízes da guerra civil. O Presidente Filipe Nyusi sempre rejeitou esta ideia e o governo recusou-se mesmo a submeter a proposta ERDIN ao Conselho de Ministros, o que levou a um impasse.
Mas os grandes doadores e financiadores, como o Banco Mundial e a União Europeia, em Washington e Bruxelas, aprovam os projectos de orçamento com um ano ou mais de antecedência, e os gabinetes de Maputo foram pressionados a distribuí-los. No fim, a prioridade era fazer sair o dinheiro pela porta fora. É uma inversão total de uma década atrás, quando os doadores podiam reter dinheiro para pressionar o governo a mudar as políticas; agora o governo tem a mão do chicote. Em Maio de 2022, a UE e o Banco Mundial libertaram parte do dinheiro com um relatório que não mencionava as raízes locais.
PODEREMOS PASSAR DA GUERRA AO DESENVOLVIMENTO?
Actualmente, existem 4.000 soldados ruandeses a combater o mesmo número de insurgentes. E os ruandeses são muito mais caros do que criar 4.000, ou mesmo 40.000, empregos locais – o que teria acabado com a insurreição. Agora, o gás vai começar com pelo menos cinco anos de atraso, e o tempo extra não foi utilizado para formar os jovens locais, pelo que os empregos irão para os estrangeiros e a guerra continuará.
Como sempre acontece numa situação destas, os maiores empregadores são as agências humanitárias que ajudam os milhões de pessoas que foram deslocadas nesta guerra. Mas isso não é uma solução a longo prazo.
Há cinquenta anos, os jovens de Cabo Delgado lutaram com coragem e criatividade, e alguns morreram. Mas, contra todas as probabilidades, ganharam a guerra, contra uma velha ditadura fascista em Portugal. Moçambique tornou-se independente. Durante cinco anos, os veteranos de guerra trabalharam arduamente, com apoiantes locais, para manter a economia a funcionar e, depois, a tentar transformá-la. Foram cometidos erros, mas a saúde e a educação para todos foram introduzidas e a economia começou a crescer. A Frelimo ganhou confiança devido ao trabalho árduo e à discussão. Havia debates sobre o desenvolvimento no jornal diário, Noticias.
Cinquenta anos depois, as mesmas pessoas – ou os seus filhos – continuam a governar Moçambique. Mas estão velhas e cansadas e prontas para se conformarem a serem recolonizadas.
Ironicamente, a mensagem dos insurrectos é a mesma que a da Frelimo há 60 anos – precisamos de uma mudança de governo e de pensamento que nos dê desenvolvimento e uma parte da riqueza.
Os jovens estão a disparar contra os mais velhos – será a única forma de a mudança ocorrer em Moçambique? Ou ainda há alguma maneira de dar voz aos jovens de Cabo Delgado – e de todo o Moçambique – uma voz, empregos e dignidade?
A grande maioria dos moçambicanos não se lembra da guerra de independência ou mesmo da guerra por procuração da Guerra Fria dos anos 1980, mas eles estão a ser governados por pessoas daquela época que sentem que o seu trabalho árduo de então lhes dá direito a dinheiro e a uma vida fácil agora, mantendo o poder. Eles actuam como agentes dos novos colonizadores. Eles criaram e lucram com a maldição dos recursos de Cabo Delgado.
Em grande medida, a Frelimo e os credores, doadores e empresas multinacionais estão satisfeitos com o estado actual da recolonização. Em 2021, o Presidente Nyusi deixou claro que não haveria voz para os jovens. Mas, quando Portugal fez isso há 60 anos, o pai de Nyusi juntou-se à Frelimo e lutou na guerra pela independência.
Podem os jovens desempenhar um papel real no desenvolvimento de Moçambique ou é necessária uma nova guerra anticolonial?
(TEXTO: OMR – Este destaque rural resulta de uma apresentação feita na conferência anual do OMR de 2024 com o título Factores de conflitualidade em Moçambique.)







