A oposição, nomeadamente Renamo e Movimento Democrático de Moçambique, votou contra com o argumento de se estar perante um expediente político de Kigali com vista a forçar os julgamentos desumanos de opositores políticos que se encontram no País. Trata-se de um instrumento que faz parte de um pacote de dois acordos assinados em 3 de Junho de 2022, em Kigali, capital do Ruanda, pelo Ministro de Estado para os Assuntos Constitucionais e Legais do Ruanda, Nyirahabamina Soline, e pela Ministra da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos de Moçambique, Helena Kida. Os referidos acordos tinham sido aprovados pelo Conselho de Ministros, em Fevereiro de 2023.
O primeiro instrumento, aprovado na quinta-feira, é a Proposta de Resolução que ratifica o Acordo sobre a Assistência Mútua Legal em Matéria Criminal que estabelece mecanismos visando garantir a assistência mais ampla possível de parte a parte, em conformidade com as suas disposições e respectivas legislações internas, na investigação ou procedimentos judiciais em relação a infracções cuja medida aplicável, no momento do pedido de assistência, é da competência das autoridades judiciais da parte requerente.
O segundo instrumento, que deve ser aprovado na próxima semana, é a Proposta de Resolução que ratifica o Acordo de Extradição entre a República de Moçambique e a República do Ruanda. Este instrumento legal estabelece os casos e condições para a extradição dos acusados pelos tribunais e dos condenados por práticas criminais nos respectivos Estados e aplicar-se-á aos pedidos feitos após a sua entrada em vigor, mesmo que os crimes ou as sentenças tenham sido cometidos ou impostas antes dessa data.
É, na verdade, a legalização da perseguição dos opositores políticos do presidente do Ruanda, Paul Kagame, que se intensificou com a entrada da tropa ruandesa em solo moçambicano para ajudar o Governo no combate contra o terrorismo e o extremismo violento em Cabo Delgado. Aliás, o que precipitou a assinatura do acordo é o “apoio” que Kigali está a prestar a Moçambique em Cabo Delgado, tendo em conta que não se conhece, para já, qualquer interesse directo de Moçambique nesta matéria de apoio mútuo legal e de extradição com o Ruanda. A assinatura, e agora a ratificação dos acordos, é uma gratificação de Nyusi ao seu “irmão” Kagame. Gratificação essa que faz parte de um pacote maior que inclui negócios em Cabo Delgado e garantia de um quinhão de gás para Kigali.
Antes da assinatura dos acordos por Moçambique, o regime de Kigali operava em Moçambique por via do esquadrão da morte ruandês que de forma selectiva raptava e eliminava fisicamente os opositores de Kagame sob alegação de terem feito parte do Genocídio do Ruanda em 1994. É uma falsa alegação. Porque inimigo da democracia e dos valores e princípios liberais, Kigali persegue os seus compatriotas por conta da luta que travam pela democracia, concretamente a diversidade de opiniões e de maneiras de pensar. Com a ratificação do primeiro acordo, a comunidade ruandesa na mira de Kagame está desesperada. Neste momento há, pelo menos, uma lista de 12 ruandeses que devem ser extraditados para o ajuste de contas com Kigali.
Ao legalizarem a perseguição de cidadãos ruandeses em razão da sua luta pela democracia, o Governo e Assembleia da República estão a agir ao arrepio da Constituição da República de Moçambique (CRM), das leis e convenções de que o País é signatário. Por exemplo, nos termos do n.º 2 do artigo 20 da CRM, a República de Moçambique concede asilo aos estrangeiros perseguidos em razão da sua luta pela libertação nacional, pela democracia, pela paz e pela defesa dos direitos humanos.
O n.º 1 do Artigo 14º da Declaração Universal dos Direitos Humanos determina que todo o ser humano vítima de perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países. Nesse sentido, o Centro para Democracia e Direitos Humanos defende que a Bancada da Frelimo na Assembleia está a prestar um mau serviço à democracia e aos direitos humanos.
As vítimas do regime de Kigali antes da assinatura e da ratificação dos acordos
Antes da assinatura dos dois acordos pelo Governo e da ratificação pela AR, Moçambique já vinha facilitando raptos, extradições extrajudiciais e assassinatos de ruandeses na mira do regime de Kigali. Por exemplo, em 13 de Setembro de 2021, Revocant Karemangingo, vice-presidente da Associação dos Refugiados Ruandeses em Moçambique (ARRM), foi assassinado a tiro perto da sua residência, no Bairro Liberdade, Cidade da Matola.
Revocant Karemangingo actuava como comerciante em muitas áreas e empregava mais de 200 moçambicanos. Revocant Karemangingo foi a primeira vítima do esquadrão da morte ruandês depois da entrada da tripla ruandesa em Moçambique. Poucos dias depois do assassinato de Revocant Karemangingo, a comunidade ruandesa residente em Moçambique denunciou a existência de uma lista de 20 refugiados ruandeses identificados como alvos a serem eliminados pelos esquadrões da morte do Governo de Paul Kagame.
A lista foi elaborada pelo regime de Kigali e inclui refugiados ruandeses que estão em Moçambique e em outros países africanos. Em Moçambique há 126 alvos de Kigali. Um refugiado ruandês que se identificou pelo nome de Alex, de 40 anos, contou, na altura, que chegou a Moçambique em Dezembro de 2003, depois de ter passado por Congo, Malawi e Tanzânia.
Alex disse que ficou espantado quando tomou conhecimento de que seu nome constava da referida lista. “Eu não fiz nada para estar nessa lista. Não há nada que eu fiz contra o meu País. Ainda que tivesse praticado um crime, o correcto seria submeter-me a um julgamento. Por que é que não posso ser julgado? Será que Moçambique não nos pode ajudar?”, questionou.
Ainda no ano de 20218, concretamente no mês de Maio, a comunidade ruandesa reportou o desaparecimento forçado do jornalista Ntamuhanga Cassien, que se encontrava exilado na Ilha de Inhaca, Cidade de Maputo. Cassien, de 37 anos, foi raptado por um grupo de oito pessoas que se identificaram como sendo agentes da PRM. Ele tinha o estatuto de refugiado com Cartão de Identificação/ Registo nº 367- 00020491, emitido pelo Instituto Nacional de Refugiados, em 26 de Abril de 2021. Mais tarde circularam informações segundo as quais Ntamuhanga Cassien tinha sido extraditado para o Ruanda para cumprir uma pena de 25 anos a que fora condenado em 2017 por crimes de conspiração contra o Governo e cumplicidade em acto terrorista, num processo com motivações políticas.
Mas a lista é extensa e inclui nomes como Louis Baziga, de 47 anos de idade, assassinado em 2019, na Matola. Louis Baziga foi assassinado com uma arma na Av. da OUA, conhecida como “Estrada Velha”, próximo da loja “Midas” da Cidade da Matola. Era comerciante e proprietário de farmácias e mercearias. Em Outubro de 2012, ano considerado de estreia do esquadrão da morte ruandês, foi assassinado Théogène Turatsinze, na altura, vice-reitor da Universidade São Tomás de Moçambique. O seu corpo foi encontrado a flutuar numa praia de Maputo. Théogène Turatsinze possuía informações cruciais sobre um saque financeiro praticado no Banco Ruandês de Desenvolvimento, instituição de que foi director, de 2005 a 2007. (TEXTO: CDD)