A onda de ameaças levada a cabo contra os juízes no exercício de suas funções, atingiu, recentemente, seu pico, no âmbito da realização das VI eleições autárquicas, tendo-se verificado com maior preponderância após as decisões tomadas pelos juízes dos tribunais de distrito ou de cidade em primeira instância sobre as reclamações aduzidas por alguns partidos políticos por existência de fortes indícios de fraude eleitoral em benefício do partido no poder durante as operações de apuramento de votos.
Efectivamente, os juízes de alguns tribunais de distrito e cidade que julgam em primeira instância os contenciosos eleitorais, no exercício de suas funções e diante de um esquema montado pelo partido no poder e órgãos de administração eleitoral para defraudar as eleições autárquicas mediante roubo de votos, falsificação de actas e editais em desfavor dos partidos da oposição, diante de elementos probatórios de existência de tamanhas irregularidades, decidiram dar provimento aos recursos dos partidos de oposição, anulando, assim, os pleitos eleitorais na totalidade ou em algumas mesas de voto.
Decorrente das decisões tomadas no âmbito do exercício pleno de suas funções, viu-se crescer a vulnerabilidade dos juízes perante ameaças levadas a cabo por certas organizações ligadas ao poder, ficando estes à mercê da vontade imposta por determinadas elites políticas do Estado moçambicano, que demonstravam pavor pela independência dos juízes e, por consequência, intolerância pela independência e imparcialidade das decisões tomadas.
Note-se que alguns juízes dos tribunais eleitorais em primeira instância se notabilizaram no exercício de suas funções, tomando decisões atípicas, num contexto de extrema dependência e controlo da classe dos magistrados pelo poder executivo, defendendo a verdade eleitoral em prol da prevalência da democracia e dos direitos humanos.
O que deveria ser prática normal dos juízes, isto é, tomar decisões justas de forma livre, consciente e independente, deve ser tido, porém, como acto de heroísmo por sofrerem represálias e ameaças
oriundas de elites com pretensões obscuras de entorpecer a justiça e de se perpetuarem no poder à
míngua do Estado de Direito Democrático e por violação extrema de direitos humanos.
Importa referir que o Presidente da Associação Moçambicana de Juízes, Esmeraldo Matavele, em entrevista dada ao CIP, no dia 1 de Novembro do presente ano, referiu que era uma realidade que os juizes têm no exercício de suas funções sofrido pressões externas oriundas de grupos poderosos, algumas autoridades e até partes nos processos, referindo-se que no processo eleitoral é normal que determinado juiz tenha recebido algum telefonema ou cartinha e até ameaças na tentativa de condicionar a decisão a ser tomada.
Referiu que, como Presidente da AMJ, recebeu queixas de diversos juízes durante os processos de contenciosos eleitorais que denunciavam ter sofrido ameaças e pressões para decidirem num certo sentido , dando, destarte, indicação de que, efectivamente, a fase do contencioso eleitoral sofreu bastantes influências externas de grupos poderosos.
Importa referir que é digno de nota positiva a denúncia feita pelo Presidente do Tribunal Supremo face à onda de ameaças que atentam contra a integridade física e moral dos magistrados, sobretudo no período eleitoral e em circunstâncias em que aqueles actuaram em defesa da Constituição da República. Entretanto, deve-se frisar que, ainda no mesmo período eleitoral, o próprio Tribunal Supremo não esteve isento de ameaças externas, condicionando a sua actuação; esta instituição marcou uma Conferência de Imprensa com intuito de se pronunciar sobre as decisões tomadas por tribunais distritais relativamente aos recursos sobre as eleições autárquicas de 11 de outubro pelo facto de o Conselho Constitucional, por meio de diversos acórdãos, ter decidido que os tribunais de primeira instância não tinham legitimidade para anular as eleições.
Entretanto, sem qualquer motivo aparente, o Tribunal Supremo comunicou o cancelamento do mesmo acto, tendo-se silenciado no lugar de demonstrar o seu posicinamento face à verdade eleitoral e, sobretudo, em defesa da classe dos magistrados, dando a entender que aparentemente sofreu pressão externa.
Pese embora recentemente o Dr. Juiz Pedro Nhatitima se tenha pronunciado em relação à interpretação do CC, que veda competências aos Tribunais de distrito em primeira instância, sinalizando que o CC limitou indevidamente a actuação dos tribunais judiciais em primeira instância, pois a lei permite que efectivamente aqueles tribunais possam anular as eleições, o Tribunal Supremo ainda não teve quaquer posicionamento oficial em relação a esta questão controvertida.
Vale aqui dizer que o Tribunal Supremo representa o ponto mais alto da expressão de soberania dos tribunais, nos termos previstos no artigo 133 da CRM, pelo que, em demonstração do seu poder sobrerano e independência, urge que, de forma oficial, se pronuncie relativamente a esta questão controvertida, tal como o pretendia fazer no dia 01 de Novembro de 2023, restaurando, assim, o apoio e o encorajamento aos tribunais inferiores. Pelo que se encoraja que o Tribunal Supremo assuma a dianteira e se pronuncie face ao posicionamento do CC que escamoteou a soberania dos tribunais judiciais.
Note-se que, para além das ameaças feitas aos juízes, se adiciona o facto de a classe dos magistrados funcionar a reboque finaceiro do poder executivo, dependendo financeiramente do governo, o que retira totalmente a independência dos juízes, que devem constantemente se humilhar ao governo para que os possa dotar de qualquer financiamento para o seu normal funcionamento. É de notar que o governo é dominado pelo partido no poder que, no presente processo eleitoral, esteve a concorrer e esteve associado a prática de actos eleitorais fraudulentos.
Portanto, diante do escamoteamento da soberania dos tribunais judiciais de distrito pelo CC, ao retirar a competência daqueles de decidir sobre a nulidade ou anulabilidade das eleições, bem como face às ameaças sofridas pelos Tribunais, denota-se que o Tribunal Supremo tem estado a dar mostras de um posicionamento mais sólido relataivamente à sua soberania e independência face a outros órgãos. Entretanto, diante de uma situação que tem potencial para criar um precedente de vilipêndio da soberania dos tribunais, torna-se imprescindível que, de facto, o Tribunal Supremo, institucionalmente, venha a público posicionar-se no sentido de desfazer o imbróglio a que o CC remeteu o poder judiciário. (TEXTO: CDD)