Na Reserva Nacional do Niassa, Jabru Suedi afugenta peixes dos seus esconderijos rochosos do rio Lugenda para a sua rede. Jabru consegue segurar até três peixes com os dentes para proteger a captura de aves oportunistas como os milhafres-de-bico-amarelo.
Joana Liconde está de pé sobre um banco de areia nas lagoas sagradas de Chemambo. O vestido verde-esmeralda está encharcado, pingando gotas de água sobre os seus pés. Está virada para o altar, um embondeiro jovem cujo amplo tronco consagrado se apresenta envolto em panos brancos, e conduz os outros peregrinos na oração. As maracas estão caladas enquanto a despedida do Sol introduz o grupo em mais uma noite de danças, cantigas e orações.
Os fiéis participam numa cerimónia de chonde-chonde no Niassa, uma área protegida do Norte de Moçambique, onde depositam oferendas de comida e dinheiro na base do embondeiro e evocam os antepassados, pedindo felicidade, saúde e abundância. Os embondeiros são antecâmaras do mundo divino. Por isso, as pessoas reúnem-se perto deles para invocar os espíritos dos antepassados. A tradição protege estas árvores do machado dos lenhadores.

Os elefantes do Niassa sofreram perdas calamitosas na década de 2010, quando as maiores manadas da África Oriental foram cobiçadas pelo seu marfim. Embora restem poucos elefantes com grandes presas, os paquidermes têm vindo a recuperar lentamente desde 2018.
Joana, uma curandeira tradicional, pede que o seu ofício seja abençoado com prosperidade. Também intercede a favor de outros aldeãos de Mbamba, um povoado com duas mil pessoas de expressão yao, situada junto do rio Lugenda. Poucos empreenderam a caminhada de dois dias até este local sagrado onde o povo presta culto desde tempos imemoriais. Os yao, como outros grupos étnicos que vivem na reserva (incluindo os macua, os ngoni, os matambwe e os maconde) possuem uma cultura que pulsa com uma ligação animista à natureza, embora tenham fundido o islão na sua espiritualidade.
Aqui, os espíritos dos antepassados perduram sob a forma de babuínos, que deambulam sobre quatro patas entre os peregrinos. Um ou dois babuínos pegam em amendoins deixados sobre a areia com dedos rijos como couro. Outros permanecem acocorados, numa postura contemplativa, sobre rochas torradas pelo sol. Subadultos guincham enquanto correm uns atrás dos outros. “Quando as pessoas morrem, entram com frequência no corpo de outras criaturas, como cobras, leões ou elefantes”, explica a curandeira.

O Niassa contradiz o mito das áreas protegidas africanas como paraísos intocados. Há milhares de anos que os habitantes obtêm o seu alimento da terra e coexistem com os animais selvagens. Não foram deslocados quando a reserva foi criada e alguns ajudam a manter as suas terras bravias, como os rios entrançados e os inselbergs protuberantes.
Longe deste templo ao ar livre, os babuínos não têm qualquer significado especial para os yao. Aliás, estes costumam até perseguir os bandos que lhes assaltam as culturas. Mas estes babuínos específicos são diferentes.
Reza a lenda que, há muito tempo, antes “dos avós dos avós” de Joana Liconde, Mambo, um chefe yao, e a sua família morreram afogados depois de se atirarem para as lagoas após um conflito na aldeia. As suas almas apoderaram-se dos babuínos, que hoje exigem respeito e alimento, razão pela qual as pessoas lhes deixam oferendas como amendoins e milho seco. “Se não o fizermos, os espíritos ficarão com fome”, explica a curandeira. “Isto foi transmitido de pais para filhos e continua a ser a tradição.”
Há milhares de anos que vivem aqui comunidades humanas. No entanto, séculos de colonização e uma guerra civil recente mergulharam as comunidades do Niassa numa pobreza desesperada. Para que esta magnífica zona bravia possa ser preservada, elas deverão ter uma participação activa nos esforços de conservação e no turismo.
Maior do que a Suíça, com 42 mil quilómetros quadrados, o Niassa foi classificado como Reserva de Caça em 1954 e Área Nacional Protegida em 1999.
No sítio sagrado de Chemambo, uma fêmea de babuíno amamenta a cria entre peregrinos que acreditam que este bando encarna os seus antepassados. Noutros locais do Niassa, os babuínos são perseguidos, mas este bando é tratado com reverência.
É uma das maiores regiões bravias africanas de que o mundo nunca ouviu falar, preservada no tempo pelo isolamento e ainda a recuperar da sangrenta guerra civil que assolou o país durante 16 anos e terminou oficialmente em 1992. É o lar de estrelas da África Oriental como elefantes, búfalos, leões e mabecos, e de curiosidades como a zebra de Böhm, a impala de Johnston e o gnu do Niassa.
As suas vastas planícies assemelham-se a peças bordadas com zonas de mato, floresta e planícies de aluvião e pontilhadas por inselbergs graníticos, afloramentos rochosos que parecem galeões no mar.
Desde tempos pré-históricos que as pessoas vivem e negoceiam na região: os primórdios da sua presença encontram-se registados em artefactos da Idade da Pedra em arte sobre telas de granito. Viviam do mato e dos rios, caçando animais selvagens, colhendo mel, fruta e frutos secos, lenha e plantas medicinais e pescando peixe. Acrescentaram a agricultura às suas rotinas, cultivando milho-miúdo, amendoim, feijão, sésamo, sorgo e culturas lucrativas como o tabaco. As mais de sessenta mil pessoas que habitam os povoados da região do Niassa continuam actualmente a viver da terra, embora os gestores conjuntos da reserva (a Administração Nacional de Áreas de Conservação de Moçambique (ANAC) e a Wildlife Conservation Society controlem a pesca e a caça. Um sistema de licenciamento limita quando, onde e como podem ser capturados os peixes. E é agora proibido caçar animais selvagens para comer ou vender aos comerciantes locais. A comunidade foi incentivada a criar patos, galinhas e coelhos como fontes de proteína alternativas.
Certa manhã de Novembro, na estrada perto de Mbamba, pescadores empurram bicicletas até ao mercado ao longo da mesma via poeirenta que os aldeãos partilham ocasionalmente com vários peões de quatro patas – elefantes, leões, antílopes – depois de terem passado semanas num acampamento 15 quilómetros a jusante, no rio Lugenda. Os cestos de bambu das suas bicicletas estão cheios de nyingu (Labeo molybdinus) e campango, um peixe-gato de água doce capturado com redes no rio. Os peixes foram secos e fumados sobre uma fogueira no acampamento. A alquimia da cura conferiu um tom cor de estanho às suas escamas e a carne ficou seca como um pergaminho, permitindo a sua conservação durante semanas.
O apanhador de mel Luís Iwene fixa uma escada rudimentar ao tronco de um embondeiro para trepar a uma colmeia ao ar livre que se encontra na copa. As abelhas acalmam-se durante a noite, mas, sem equipamento protector, Luís sofrerá várias picadelas enquanto parte pedaços de favo de mel para levar consigo para a aldeia.
Para os yao, os peixes são mais do que uma mera fonte de proteína. São tão valiosos como moedas recém-cunhadas. Os aldeãos trocam o peixe por óleo alimentar, arroz e até roupa no mercado local. Mbamba ainda está ligada às rotas comerciais ancestrais que atravessavam a região, permitindo aos pescadores vender parte da sua captura a mercadores de outros locais da reserva e mais além. “Há pessoas que vêm de Cabo Delgado”, uma província a leste, diz Benvindo Napuanha, director comunitário do Projecto dos Carnívoros do Niassa (NCP), uma iniciativa de conservação criada em 2003. “Até há pessoas da Tanzânia a comprar este peixe”, acrescenta.
A maior parte da área do Niassa (72% do território) foi concessionada para caça desportiva e os operadores privados arrendam terrenos para esse fim. Cada bloco de caça tem a sua quota de troféus que podem ser abatidos, como búfalos, leopardos, leões e antílopes. Depois de um animal-troféu ser morto, as concessões oferecem com frequência o corpo aos aldeãos para aproveitamento da sua carne. Pouco mais de um quarto da reserva foi destinada a actividades turísticas que não incluem a caça e 1% pertence a áreas de conservação especiais onde o turismo não é permitido. A caça de troféus representa mais de quatro quintos da receita anual de 930 mil euros gerados pelo turismo. Depois de o Estado retirar a sua parte, os aldeãos recebem 20% das receitas para gastarem como lhes aprouver.
Novembro é tão desconfortável nesta região de Moçambique que, por vezes, lhe chamam o “mês suicida”, quando as chuvas estão iminentes e o mercúrio sobe acima de 38 graus. Numa manhã soporífera, um grupo de aldeãos parece ignorar o calor esgotante enquanto escora uma secção de muro ao longo de uma trincheira de quatro quilómetros escavada em redor de Mbamba há dois anos. Com cerca de dois metros de profundidade, o fosso seco impede a entrada de elefantes e búfalos.







