FAUSTO JAIME LICHUCHA
Introdução
O processo de autarcização do país resulta do compromisso assumido em decorrência da assinatura dos acordos de paz em Roma no dia 04 de Outubro de 1992, que pôs fim a um conflito civil que durou cerca de 16 anos. Este compromisso visou o estabelecimento de uma “nova democracia” baseada na descentralização do poder.
Essa descentralização do poder, segundo referiu o Professor Gilles Cistac, estava mais ligada ao poder local (assembleia) que segundo o académico deveria ser um órgão autárquico eleito por sufrágio universal na circunscrição territorial a ser governada e que seria dotado de poderes deliberativos no seu território não dependendo mais dos órgãos locais do Estado, mas sim estando sujeitos a tutela do Estado (CISTAC, 2012).
Tendo em conta as características das eleições autárquicas realizadas nos pleitos anteriores, com enfoque nas eleições de 2013 e 2018, o presente artigo tem como objectivo elaborar um quadro analítico sobre o que se pode vislumbrar nas eleições marcadas para o dia 11 de Outubro de 2023.
Breve historial sobre as eleições autárquicas em Moçambique
Em Moçambique as eleições autárquicas surgiram da necessidade de haver uma descentralização do poder local, que havia desde 1975 – 1990, que foi revisada e modificada a partir da Constituição da República de 1990, que tinha como principal foco a Autonomia e a Descentralização (MATUNDULO, 2017).
Neste contexto, o país deu início a um processo de modificações no seu quadro jurídico-politico baseada em reformas dos órgãos locais do Estado, descentralização administrativa que foi sustentada pela aprovação da Lei nº 3/94, de 13 de Setembro que aprova o quadro institucional dos distritos municipais, a conversão dos distritos municipais em distritos cidades aprovada pela Lei nº 2/97, de 18 de Fevereiro, que Aprova o quadro Jurídico para a implantação das autarquias locais e a implantação de municípios no território nacional pela Lei nº 10/97 de 31 de Maio que cria os municípios de cidades e vilas em algumas circunscrições territoriais.
As primeiras eleições autárquicas verificaram-se no ano de 1998 e abrangeram 33 municípios sendo que seriam disputadas apenas pelos partidos políticos FRELIMO e RENAMO. Porem, o partido FRELIMO assumiu a governação em todos os municípios em decorrência do boicote eleitoral protagonizado pela RENAMO que alegou falta de transparência do processo eleitoral (MATUNDULO, 2017).
NOÉ (s/a) citado por Matundulo (2017) refere que em 2003 tiveram lugar as segundas eleições autárquicas, igualmente disputadas em 33 municípios, mas desta vez com a participação de todos os partidos, incluindo a RENAMO, que saiu vencida com a conquista de apenas 9,09% de municípios contra os 87,87% de municípios conquistados pela FRELIMO. Nestas eleições há que destacar o facto de, pela primeira vez, um partido diferente da FRELIMO ter assumido a administração de partes importantes do território, com uma vitória assinalada na Beira por um partido não dominante, neste caso a RENAMO.
Já em 2008, foram realizadas as terceiras eleições, antecedidas pela criação de mais 10 municípios, totalizando 43, nas quais observou-se a participação de muitos partidos políticos, além dos principais partidos nacionais (FRELIMO e RENAMO), num contexto em que este último revelava-se enfraquecida e dividida o que precipitou uma candidatura independente do então candidato da RENAMO vencedor das eleições de 2003 na cidade da Beira, Daviz Simango, que para além de ter vencido as eleições nesta qualidade, liderou a criação de um novo partido politico, o Movimento Democrático de Moçambique (MDM), um partido por si liderado.
Após estas eleições, seguiram-se as de 2013, que contaram com a adição de mais 10 municípios totalizando 53, os mesmos disputados nas eleições de 2018. Importa referir que nas eleições de 2013 a RENAMO não participou pelos mesmos motivos alegados nas primeiras eleições realizadas em 2008.
Análise às eleições autárquicas de 2013
As eleições de 2013 foram realizadas em mais 10 vilas nacionais, totalizando 53 autarquias e contou com a participação da FRELIMO e do MDM uma vez que a RENAMO furtou-se a participar pelas mesmas suspeitas de que o processo eleitoral não oferece garantias de transparência.
Nestas eleições, o Conselho Constitucional decidiu, através do Acórdão n° 4/CC/2014, de 22 de Janeiro, anular as eleições em Gurué, alegando “flagrantes violações da lei” por parte dos funcionários eleitorais, nomeadamente os membros das mesas das assembleias de voto, assim como da Comissão Provincial de Eleições da Zambézia, para além de ter criticado os excessos da parte da Polícia, incluindo a detenção ilegal de delegados do partido MDM e criticou a Comissão Nacional de Eleições (CNE) por violações graves de segurança que permitiram que os boletins de voto fossem encontrados fora das assembleias de voto antes mesmo do começo da votação (CIP, 2013).
A FRELIMO nestas eleições cimentou sua hegemonia com uma vitória em 50 municípios tendo o MDM conquistado apenas 3 municípios. Porem, apesar desta derrota o MDM teve uma vitória histórica ao vencer as eleições nas capitais provinciais com tamanha importância tais são as cidades de Beira, Nampula e Quelimane, conquistadas por um partido político não dominante (MATUNDULO, 2017).
Análise às eleições autárquicas de 2018
As eleições autárquicas neste ano foram realizadas a 10 de Outubro, num contexto em que, pela ausência da RENAMO nas eleições anteriores por alegadas violações e falta de transparência dos processos eleitorais, a FRELIMO dominava a governação municipal com uma administração de 50 dos 53 municípios, estando os outros três sob a administração do MDM, sendo a destacar a sua grande conquista nas cidades da Beira, Nampula e Quelimane, considerados os maiores círculos eleitorais.
Para a activista social, Conceição Osório, as eleições ocorreram primeiro num contexto de pós-conflito armado que originou um ambiente de instabilidade politica e social impedindo ao exercício, em igualdade de circunstâncias, dos direitos dos cidadãos de serem eleitos para além do acesso atempado sobre o novo quadro legal aprovado meses antes das eleições, ou seja, em Agosto de 2018; e, depois, numa situação em que se verificou a bipolarização no debate público sobre as negociações para a paz, o que influenciou de forma negativa a intervenção de outros partidos políticos que se apresentaram às eleições num contexto desfavorável (OSORIO, 2019).
Análise às futuras eleições de 2023 – o que se pode esperar?
Tomando em consideração as características das eleições anteriores, num contexto de esforços de maior descentralização democrática e com clara presença de mais partidos políticos, com destaque para o MDM que tem vindo a reduzir de forma significativa a bipolarização do poder, o que permite maior consolidação da democracia nacional, pode-se esperar que as eleições autárquicas de 2023 contem com a participação dos três maiores partidos com assento parlamentar (FRELIMO, RENAMO e MDM).
É notório o enfraquecimento das acções politicas dos dois principais partidos da oposição em decorrência da morte dos seus lideres históricos, que gerou um clima de tensões internas e um processo de eleicoes para encontrar novos lideres que não tem sido muito consensuais tendo na RENAMO sido contestadas por alegadas falhas no processo do DDR o que precipitou a criação de uma junta militar que tem colocado em cheque este partido.
Igualmente, a RENAMO anunciou que vai criar um “Governo Sombra” para fazer face às eleições de 2023, propondo-se a repescar o velho instrumento de fiscalização politica adoptado pela primeira vez em 2005, indo desta vez além do Governo Central acompanhando o novo modelo de governação descentralizada, o que significa que “vão ser colocados em todas províncias, distritos, postos administrativos e localidades, representantes do partido, para aos poucos se inteirarem do processo de governação descentralizada e permitir a sua participação nas eleições autárquicas e distritais” (Ossufo Momade, in STV Noticias de 30/03/2022).
Porém, com o aumento sistemático e introdução de novas taxas, que tem gerado uma onda de protestos por parte dos cidadãos, pode-se antever uma disputa bastante renhida e consequente redução do poder da FRELIMO em alguns municípios de sua maior influencia.
Com o efeito, tal como foi observado pelo CIP (2013) citando o Conselho Constitucional, pode haver excessos por parte da Policia da Republica de Moçambique, na tentativa de conter eventuais intervenções dos cidadãos no sentido de verificar o processo de apuramento e contagem de votos.
Ademais, com a já anunciada presença da oposição liderada pela RENAMO que decidiu criar um mecanismo de fiscalização do processo eleitoral em todos os municípios, é de esperar que se reduza significativamente a propensão a fraudes eleitorais e tentativas de manipulação de resultados.
Conclusões
Com a necessidade de consolidação da democracia, Moçambique tem se empenhado em aprimorar cada vez mais a sua legislação eleitoral adequando-a à nova perspectiva de governação descentralizada garantindo que os processos sejam cada vez mais transparentes e melhorem o diálogo político.
Apesar do aparente enfraquecimento dos dois maiores partidos políticos da oposição com a morte dos seus lideres e fundadores, tem-se verificado um processo de reestruturação que visam as eleições de 2023, ao mesmo tempo que o partido “dominante” tem-se consolidado ao nível das suas bases na tentativa de encontrar consensos entre os seus membros com a visão única de consolidar o seu poder e hegemonia governativa.
Pode-se notar que, com os recentes argumentos de falta de dinheiro para organizar as eleições autárquicas se possa verificar um processo de recenseamento menos abrangente nas zonas controladas pela oposição o que pode propiciar a existência de pólos de conflitos, numa altura em que tem se verificado pressões de vários grupos e organizações, incluindo a União Europeia com vista a se reformarem as leis eleitorais por forma a tornar os processos mais transparentes.
Porem, e de acordo com o que se pode verificar das eleições autárquicas já realizadas, pode-se assistir a uma hegemonia na governação por parte da FRELIMO que lidera o governo do dia, com fortes contestações eleitorais dos partidos da oposição que vêem sistematicamente a sinalizar a ocorrência de situações de fraudes, tal como a que obrigou a anulação dos resultados eleitorais de Gurué em 2013.
Bibliografia
CIP – Centro de Integridade Publica. Boletim sobre o processo político em Moçambique, número EA 67 – 23 de Janeiro de 2013.
CISTAC, Gilles (2012). Institucionalização, organização e problemas do poder local. Lisboa: Jornadas de direito municipal comparado Lusófono.
MATUNDULO, Mario Raul (2017). Breve Historia das Eleições Autárquicas em Moçambique.
OSORIO, Conceição (2019). Mulher e democracia: indo para além das quotas. O caso das eleições autárquicas de 2018. Maputo.
STV Notícias. Jornal Online Publicado em 30 de Março de 2022.